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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil

5 de junho de 2014

O QUE É NOSSO NÃO É MEU


O motorista parou no sinal, deu a última tragada no cigarro e jogou a guimba ainda acesa na calçada. O pedestre viu aquilo, parecia não acreditar. Recolheu a guimba no chão, ainda acesa, e jogou-a de volta dentro do carro do motorista:

- Na minha casa, não!

O motorista ficou revoltado:

- Você ficou maluco? Em tempo de furar meu banco de couro!

- Uai, mas foi você que começou! Jogou um cigarro aceso na rua... 

- Mas isso é TO-TAL-MEN-TE diferente! 

- Diferente por quê? É certo você sujar nossa rua e é um absurdo se eu devolvo a SUA sujeira pro SEU carro? É isso?

Iniciou-se um bate boca. Uma aglomeração se formou pra ver de perto a acalorada discussão. Ouviram atentamente o que cada um dizia.

Deram razão ao motorista.


24 de fevereiro de 2014

AOS AMIGOS JOÃO E KIKO


Um dos principais problemas do PT, concordo, foi ter feito alianças malditas com gente do naipe de Renan Calheiros em nome da governabilidade. No sistema político brasileiro, o Presidente precisa de maioria na Câmara para governar, para aprovar as medidas que considera importantes. O Presidente não tem como governar sozinho (só fazendo um AI-5 de novo e fechando o Congresso, coisa que alguns Bolsonaros adorariam).

Com o atual sistema eleitoral, com financiamento privado de campanhas, nossos deputados se elegem graças à injeção, em suas campanhas, de dinheiro de empresas privadas, de maneira que chegam ao Congresso Nacional não como representantes dos eleitores, mas como jagunços a serviço daqueles que investiram em suas campanhas. É um negócio: você investe no político, elege-o, e depois vai atrás dele exigir seu lucro.

Infelizmente não há, entre presidência e Congresso, um debate de ideias, de programas políticos. O que nossos congressistas querem é o toma lá da cá. Ninguém vai me convencer que o Congresso aprova alguma medida por considerar que “vai ser bom para o Brasil”. Isso, lamentavelmente, é viver num mundo de fantasia.

FHC foi acusado de comprar votos pra aprovar a reeleição. O PT foi acusado (e condenado) na Ação Penal 470. Isso porque há essa crise de representação num Congresso onde o debate é impossível, a não ser nos termos do toma lá da cá. SEJA QUEM FOR O PRESIDENTE, enquanto a situação no Congresso for essa, só governa no BRASIL REAL quem tiver estômago pra apertar a mão de Temer e Renan.

Quando a Dilma falou em plebiscito pra fazer essa necessária reforma política, entretanto, todo mundo chiou. Lembra? Era justamente uma tentativa de usar o momento político das manifestações de insatisfação popular pra promover reformas importantes para o país.

E dentro desse contexto de conchavos escusos pra garantir poder político e eventual maioria no Congresso, o Eduardo Campos e a Marina apenas representam mais do mesmo, uma vez que, foi só saírem do “campo das ideias” e entrarem na POLÍTICA REAL, que se viram obrigados a negociar com gente do naipe de Caiado, Bornhausen e Heráclito Fortes. Se Marina e Campos não se alinharem a essa gente, não aprovam nada. Não governam. Ou seja, MAIS DO MESMO.

Ainda prefiro a Dilma e o PT por considerar que tentam, apesar desse contexto todo, fazer um governo voltado primeiramente à população mais necessitada. Com todas as dificuldades, trata-se de um governo que em pouco mais de 10 anos tirou 36 milhões de pessoas da pobreza extrema, diminuiu radicalmente o desemprego, incluiu milhões de brasileiros na economia formal, valorizou o salário mínimo, consolidou as políticas de cotas sociais nas universidades públicas, conferiu mais direitos a trabalhadores domésticos, dentre outras conquistas importantes.

Minha tristeza é ver que a nossa antiga classe média não se empolga com essas conquistas e a ascensão das classes mais baixas. Pelo contrário: se sente enfraquecida pela perda de privilégios. O patrão se irrita ao ver que seu funcionário agora tem condição de comprar um carro: “Devo estar pagando um salário muito alto”. A professora universitária se sente ultrajada pela “perda de glamour” nos aeroportos, depois que voar de avião deixou de ser exclusividade de gente rica. O aumento do poder aquisitivo de brasileiro não a deixa feliz. Ela sente falta de uma época em que pouca gente tinha acesso aos aeroportos, e ela podia exibir suas viagens de avião como símbolo de status. O mesmo status que move o Rei do Camarote.
(http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/professora-da-puc-ironiza-passageiro-de-aviao-e-ganha-pagina)
No episódio da PEC 72, a madame dona de casa achou um absurdo a legislação que iguala os direitos trabalhistas da empregada que lava o banheiro dela aos direitos dos outros trabalhadores.

500 anos de injustiça social não vão ser resolvidos em 10 anos de governo, nem em 20. Muita coisa precisa melhorar, sempre. Mas considero que os governos do PT têm feito o possível pra melhorar a vida de quem mais precisa. Ainda não é o ideal, mas é disparado o melhor que temos dentro da atual conjuntura. E felizmente o povo sabe disso.

27 de novembro de 2013

NOVOS DIAGNÓSTICOS


- Você foi diagnosticado com déficit de atenção.

- Hein?

- Déficit de atenção.

- O que?

- Déficit.

- Repete.

27 de dezembro de 2012

TINHA UMA FESTA NA RUA


"Em amor, é um erro falar-se de uma má escolha
uma vez que, havendo escolha,
ela tem de ser sempre má."
Marcel Proust

Tinha uma festa na rua. Estava tocando rock, a banda era boa, a cerveja estava gelada, tudo certo. Mas caiu um pé d’água. Uma chuva imensa que fazia a água correr no meio fio como se fosse um afluente do São Francisco. Todo mundo correu procurando algum lugar pra se proteger daquele “remake” do dilúvio. 

Quem mora aqui sabe. Quando chove em BH, parece que o mundo vai acabar. As ruas transbordam, o trânsito para, a luz acaba. E pra tentar escapar desse fim do mundo, as pessoas começaram a se acotovelar debaixo de uma lona que pelo menos servia pra proteger parcialmente da chuva. Debaixo dela chovia menos, mas chovia. Todo mundo molhado, inclusive uma morena que apareceu do meu lado de all star preto de cano longo e cadarço preto. Eu estava bêbado e pensei: “com essa eu casava fácil.”

Achei importante falar aqui que eu estava bêbado porque na hora eu mesmo fiquei me questionando: “onde já se viu pensar em casamento numa hora dessas, no meio desse aguaçal? Só pode ser coisa de bebum mesmo.” Aí, bem nessa hora, a morena do all star preto passou, molhada, na minha frente. Olhei com calma, buscando a serenidade e o distanciamento necessários para um julgamento imparcial, impessoal que me permitisse uma leitura fria dos fatos. Respirei fundo, contei até três e aí sim pude emitir uma avaliação ponderada: “é, com essa eu casava fácil.

Parecia um daqueles comerciais de xampu em que o mundo em volta corre em velocidade normal e só a mulher está em câmera lenta. Ainda em câmera lenta ela gira o cabelo espargindo no ar puríssimas gotas enquanto os homens em volta despejam no chão espessos fios de baba. Mas acho que essa cena não aconteceu de fato. Deve ter acontecido só na minha cabeça enquanto eu tentava, em vão, emitir um parecer neutro sobre a morena e seu all star com cadarço preto.

Pensar em casamento nunca foi coisa minha. Sempre tive aversão a estabelecer relacionamentos, ainda mais os duradouros. Qualquer tipo de convivência que implicasse alguma dedicação da minha parte sempre me gerou repulsa, ou no mínimo preguiça. Na literatura, prefiro os contos aos romances. Contos são curtos, enquanto romances demoram demais, e acabam por isso nos forçando a um mergulho na história, uma intimidade exagerada com o protagonista, enfim, demandam um engajamento excessivo que sempre busquei evitar. No cinema, nunca tive paciência para essas trilogias que todo mundo adora. Onde já se viu gostar de um filme que só acaba daqui a três anos? Tenho também verdadeiro horror àqueles intermináveis seriados de suspense americanos, tipo Lost, que as pessoas acompanham freneticamente, sofrendo junto, baixando na internet o episódio um dia antes da exibição na TV, para só após 12 temporadas saberem o final (normalmente decepcionante).

Mas voltando à morena do all star preto, o fato é que um dia a conheci. Tínhamos um amigo em comum. E ocorreu uma coisa diferente, estranha, novidade pra mim. Dizem que quanto maior a expectativa, maior a decepção. E como a minha expectativa em relação à morena era imensa, já estava certo que viria junto uma descomunal decepção. Nunca veio.

Ontem, na festa, a morena do all star preto inovou: estava de vestido branco. Eu nem tinha começado a beber ainda. De cara limpa, aproveitei pra olhar pra ela, mais uma vez buscando aquele julgamento sóbrio, definitivo e pensei: “É. Casei”.

E casei mesmo, porque depois que eu a conheci, vi que ela era o contrário de tudo: era como o livro que eu queria ler e reler todo dia, a trilogia que não cansa, o seriado que eu queria que nunca tivesse fim. E tudo isso de um jeito natural, fácil. Não exigiu de mim um esforço sobre-humano, não foi nada difícil ou trabalhoso, como eu sempre achava que ia ser. Difícil e trabalhoso era ficar longe. Não foi uma escolha objetiva, técnica, avaliando prós e contras. Aliás, nem sei mesmo se foi uma escolha. Tendo a achar que não: num instante era eu, no próximo, éramos eu e ela. 

Considero um caso raro esse acontecimento na nossa vida, uma coincidência incrível, uma coisa estatisticamente improvável: conhecer alguém que provoca em mim o que ela provoca (desde aquele já distante encontro no dilúvio) e ter a sorte danada de, por mero acaso, também provocar isso nela. 

Não sei por que isso aconteceu. Não acredito em destino e muito menos em Alguém por aí escrevendo certo por linhas tortas. Só sei que aquele dia, há já nem sei quantos anos, tinha uma festa na rua. Agora, todo dia tem uma festa lá em casa.



25 de março de 2011

FOBIA

Uma velhinha muito maquiada entra no prédio e dirige-se ao porteiro:


- Eu queria saber se nesse prédio tem ascensorista.

- Olha, minha senhora, não tem não senhora.

- Ai, moço! É que eu preciso ir ao sexto andar agorinha e tenho fobia de pegar elevador sozinha. Não pego de jeito nenhum.! O que é que eu faço, moço? – perguntou apavorada.

- Olha, minha senhora, ascensorista mesmo não tem não senhora. Mas se a senhora se apressar, aquele rapaz de calça jeans ali no hall esperando o elevador trabalha justamente no sexto andar. A senhora pode pegar o elevador junto com ele.

-Ah, que bom! – respondeu. E foi logo em direção ao tal rapaz de calça jeans pedir ajuda.

- Moço, o senhor está indo ao sexto andar? É que o porteiro me disse que você trabalha no sexto andar e eu tenho hora marcada na esteticista lá agora, mas tenho pavor de entrar sozinha em elevador. Não pego mesmo! Você me acompanha até lá? Tenho fobia de lugar fechado!


O rapaz arregalou os olhos e, antes que conseguisse responder qualquer coisa, desmaiou. O tal rapaz, o de calça jeans, era eu. Esse que vos escreve.

E eu tenho fobia, mas muita fobia mesmo, de velhinhas muito maquiadas que puxam papo no hall do elevador.


10 de dezembro de 2010

O PIOR DOIDO É O QUE VÊ TUDO

Não é fácil ser boêmio. Verdadeiros antropólogos do prazer, doutorandos da devassidão, os boêmios somos pessoas sem fim. Tão bem definidos pelo ébrio profissional Paulo Terror como viciados no "acúmulo de excessos", escolhemos levar a vida nesse passo mais curvilíneo, menos objetivo, o que nos parece de fato a decisão mais acertada a ser tomada nesse mundo de incertezas. Esse estilo de vida assim vadio é bom, mas a gente sabe que tudo que é bom tem seu preço. É aquela história do "cada escolha uma renúncia", como se existisse na vida uma lei da compensação: a gente sempre ganha umas coisas e perde outras. Pra você ter uma ideia, em decorrência da boemia já ganhei muitos quilos, mas em compensação estou perdendo a memória.

O fato é que uma coisa leva à outra. Esse incremento alarmante na massa corporal, por exemplo, me levou certa feita a esse estranho templo do narcisismo: a academia de ginástica. Lá estava ela, repleta de espelhos e de pessoas que analisavam nos reflexos a definição dos seus abdomens suados. Fui submetido a alguns penosos exames e estes acusaram impiedosamente que meu índice de massa corporal era considerado indesejável. "Índice de massa corporal indesejável" foi o jeito que os professores de educação física inventaram para poderem chamar a gente de gordo com educação, e ainda por cima com um certo respaldo científico.

Depois de aceitar com surpreendente tolerância o diagnóstico de sedentarismo e obesidade, veio o cidadão longilíneo de aparência irritantemente saudável me explicar que pra alcançar o tão sonhado índice de massa corporal indicado para o meu biótipo o exercício mais recomendado era a corrida. Sendo assim, fui encaminhado à esteira, aquele equipamento em que, contrariando a física que eu aprendi no colégio, realiza-se um trabalho fazendo força sem deslocamento. Parecia detestável e pouco inteligente ficar fazendo esforço sem nem sair do lugar, mas ainda residia em mim uma vaidade que a boemia insistia em querer expulsar. Um mesmo corpo que desejava o convívio sadio entre mundos tão distintos: a noite e o dia, o tira-gosto e as artérias saudáveis, o excesso de vodca e os neurônios imortais. É bem verdade que fica difícil a vida assim, mas suportar uma tortura diária de meia hora na esteira despontou dentre todas como a solução menos inviável (houve, por exemplo, quem sugerisse a tal reeducação alimentar, que na verdade não passa da desculpa que os gordos precisavam pra poder pensar em comida o tempo todo).

Resignado, resolvi aceitar a árdua tarefa e comecei logo no primeiro dia. Meia horinha de corrida pra poder tomar minha cerveja com menos culpa de noite. Eu ainda estava no começo do exercício quando ele chegou. Usava uma barba vasta e uma camisa branca meio frouxa de mangas bem compridas.

- Moço? - ele me chamou.
- Pois não - respondi.
- Quanto é que eles lhe pagam pro senhor ficar correndo aqui nessas máquinas?
- Uai - estranhei - não me pagam nada. Pelo contrário: eu é que pago pra eles.
- Tá doido, moço? Com esse tanto de rua lá fora?

Aquela resposta me atingiu em cheio. Na mesma hora, me senti como aqueles ratinhos idiotas que passam a vida inteira correndo naquelas rodinhas sem nunca alcançar o queijo. Nunca alcançam, mas nunca param de correr. Pensei: estou quase um hamster. Olhei para o lado e vi vários outros hamsters, todos correndo lado a lado, dando tudo de si sem sair do lugar, cada um perseguindo seu parmesão imaginário. Olhei para o outro lado e vi uns enfermeiros recolhendo o rapaz barbudo e me pedindo desculpas: "O Senhor me desculpe, mas deixamos o portão aberto sem querer. Ele escapou da clínica de reabilitação mental hoje de manhã e só agora fomos encontrá-lo aqui nessa academia."

Pra quem não sabe, clínica de reabilitação mental é o nome que deram ao hospício depois que o mundo foi infestado pelos chatos do politicamente correto. Em bom português dos anos 80, o barbudo seria descrito como um louco de camisa-de-força que tinha fugido do hospício. Mas o fato é que, de todos, ele foi o que me pareceu enxergar tudo com mais clareza ali. Malucos éramos nós, pagando pra correr em esteiras "com esse tanto de rua lá fora". O alucinado era o único lúcido da história.

E de repente eu imaginei essa história dentro de um contexto maior. Uma possibilidade remota, é verdade, mas ainda assim uma possibilidade: imaginei que talvez as pessoas lúcidas como ele sejam minoria. E que talvez os hospícios sejam lugares que nós, a maioria esmagadora de alienados, democraticamente criamos para manter afastados do nosso convívio justamente essa minoria de pessoas muito lúcidas. Lúcidas e por isso capazes de fazer as observações mais brilhantes, que esclareceriam desagradavelmente a cada instante a verdade sobre a absurda falta de sentido do nosso mundo, e revelariam talvez o delírio que torna possível acordarmos toda manhã para mais um dia. E assim transformariam nossa vida numa experiência bem mais difícil do que já é.

Talvez também seja por isso que tem tanta gente boêmia, como eu. Tanta gente por aí bebendo, tanta gente fumando, tanta gente cheirando. Tanta gente correndo freneticamente em milhares de esteiras mundo afora. Tanta gente rezando, orando, cantando obsessivamente à procura de um Deus. Cada um escolhendo o seu alívio, sua distração, a sua droga que ajude a escapar de uma lucidez insuportável como a desses poucos que moram nos hospícios e a tudo enxergam, convenientemente afastados de nós.

-Me tirem aqui dessa esteira e me ponham na ambulância! Eu quero ir é com o louco.


1 de dezembro de 2010

DA IMPORTÂNCIA DAS ESCOVAS DE DENTE

A gente já tinha terminado, mas as coisas que ela disse não saíram da minha cabeça. Ela era especialista nisso: tirar o corpo fora na hora que a coisa dava errado. Nunca via a parte dela nos erros. Não via ou convenientemente fingia não ver, que é o que eu acho mais provável, afinal estamos falando de uma mulher e mulher sempre vê tudo. Até o que não aconteceu.

Mas ela não era direta, não. O discurso dela era cheio de curvas. Dava voltas e mais voltas, passeava no tempo, pra trás e pra frente, relembrava uns fatos, inventava outros, saltitava no absurdo, mas no final deixava só uma mensagem subliminar: “a culpa é toda sua, Fabrício”. Fabrício, claro, sou eu. Este homem pisoteado que vos fala.

- Você nunca quis que eu morasse com você, Fabrício! Nunca!
- Como não, Amanda? Já te falei mil vezes pra vir pra cá. E quando você disse que tinha nojo do meu sofá e que minha casa era um antro que fazia você ficar imaginando “todas as mulheres” que eu teoricamente trouxe aqui... Veja bem, Amanda: te-o-ri-ca-men-te!
- Você é mesmo um canalha, Fabrício!
- Você não me deixa falar, tá vendo? Tô aqui tentando te lembrar que só pra te agradar e fazer você se sentir melhor na minha casa, aliás, na nossa casa...
- Tá vendo? Olha aí o ato falho!
- Que ato falho o quê, Amanda! Eu disse a NOSSA casa, e você ouviu muito bem! Nossa casa sim, que eu pintei todinha de amarelo-quindim só pra você se sentir melhor. E ainda troquei meu sofá de couro de estimação por um novo daquele tecido chechênia que você gostava.
- Chenille, Fabrício. Chenille.
- Agora você reconhece, né? O tanto que eu fiz por você... Olha só como você é!
- Fez porcaria nenhuma, Fabrício. Tem anos que eu venho aqui e você sequer se deu ao trabalho de comprar pra mim uma escova de dente e colocar lá, no copo, do lado da sua.
- Escova de dente, Amanda? Quer dizer que você quer ir embora por causa de uma mísera escova de dente?
- Você não entende nada mesmo, Fabrício. Não é a escova de dente, mas o que ela representa. É uma coisa simbólica, meu filho. Tem a ver é com o gesto...
- Gesto?
- Só pra você ter uma ideia, outro dia a Bernadete me contou que chegou no apartamento do Duílio e ele tinha deixado pra ela no banheiro, do lado da escova dele, uma escova de dente rosa embrulhada com laço de fita e tudo...
- Meu amor, você vai cair numa dessas? Aí tem coisa! Pelo amor de Deus, aquele ali é um picareta! E olha que eu falo com conhecimento de causa porque o Duílio é meu melhor amigo. Crescemos juntos!
- E desde quando você cresceu, Fabrício? Que novidade é essa agora, meu filho? Vê se pelo menos aproveita que eu tô indo embora e toma jeito. Cresça e apareça porque pra mim já deu.
- Mas meu amor, por causa de uma escova?
- A escova é o símbolo, Fabrício. A escova é só o resumo da ópera...

E foi embora.

Durante muito tempo tive ódio. Se eu a encontrasse na rua, talvez tivesse vontade de agredir. Ficava imaginando encontros fictícios em que eu a maltratava. Minha mágoa se transformou em ódio, e o ódio em um dado momento, virou revanchismo. Eu fiz de um tudo por essa mulher. A tinta amarelo-quindim na parede, o sofá de tecido chechênia, tudo pra tentar resolver uma neura que era toda dela, aquela mania de ficar fazendo uma associação doentia do meu apartamento com uma vida de solteiro que na cabeça dela eu tenho certeza que era muito mais promíscua do que realmente foi, mesmo se eu considerar aquela fase mais permissiva com as duas garçonetes do centro e os potes de sorvete de flocos. Eu realmente queria que ela se sentisse mais à vontade na minha casa. Ou melhor, na nossa casa...

Mas o fato é que um tempo depois tudo passou e ela também: passou num concurso e foi morar no interior. Essa mudança foi boa. Um afastamento forçado que impediu que eu empreendesse aqueles maltratos públicos imaginários e que acabou resultando no fim de todas as inquietações. Chegou um dia em que acabou tudo: a mágoa, o ódio e até a aflição daquelas paredes amarelo-quindim me encarando todo dia. Quase tudo: ficou só uma pontinha de saudade e uma impressão de que talvez eu não tivesse tentado o tanto que deveria. Uma sensação de que deveria ter insistido mais.

Aconteceu que eu fui ser padrinho de casamento no interior, exatamente na cidade dela. A vontade de revê-la foi mais forte que a razão. Analisando friamente, eu sabia que não era boa ideia. Mas análise fria é uma coisa que eu só faço pra poder descartar. Pra depois que tudo der errado, como eu previ, poder ter aquela sensação vitoriosa de onisciência. Então liguei. Ela me atendeu muito receptiva, carinhosa, com aquele timbre de voz dela que eu passei tempos depois procurando outro igual e nunca encontrei. Eu reconheci ali a Amanda da fase boa, então disse logo que estava na cidade e que queria revê-la. Marcamos no apartamento dela.

Era um corredor escuro, tinha daqueles sensores de presença pra acender a luz que nunca funciona. Quando Amanda abriu a porta me pegou fazendo uma coreografia deplorável, batendo asas numa tentativa ridícula de atingir algum sensor e acender a luz. A coreografia do avestruz serviu para quebrar o gelo. Rimos juntos e ela me chamou pra entrar. Mostrou-me a casa, ainda com poucos móveis: uma cama de casal no quarto, uma de solteiro na sala, servindo de sofá e uma mesinha baixa com uma televisão por cima. Era basicamente isso.

Em questão de segundos, exibíamos no sofá o encaixe perfeito, desses que só são possíveis depois de anos de entrosamento. Você deve estar aí imaginando uma cena de sexo selvagem que inclui suor e posições assustadoramente flexíveis, mas não é nada disso. Ela estava sentada e eu acabei deitando a cabeça em seu colo, devagar, receoso de uma possível restrição da parte dela, que não houve. Aquela posição me proporcionava um conforto esquecido, quase uterino. Que ardam nos quintos dos infernos as malditas paredes amarelo-quindim carregadas de frustração: minha verdadeira casa era aquele colo. E nele passei horas, conversando sobre tudo. Assunto nunca nos faltou, ainda mais depois de tanto tempo sem conversa. É que há nos casais inspirados esse misterioso estado de graça que faz parecerem interessantíssimos até os assuntos mais desinteressantes.

Mas era muita informação, muitas sensações estranhas, velhas e novas, ao mesmo tempo. Com muito pesar tive que momentaneamente abrir mão daquele colo bom. Precisava raciocinar um pouco e por um instante me tranquei sozinho no banheiro. Várias perguntas passeavam na minha cabeça. Será que a gente ainda tem uma chance? Será que daria certo se eu largasse tudo e me mudasse pra casa dela? Será que uma mulher perfeita como ela está solteira depois de tanto tempo morando aqui?

Resolvi lavar o rosto, voltei-me para a pia e tive a resposta impiedosa, imediata como um soco na barriga. Bem ao lado da torneira, sobre a bancada da pia, havia um copo. Nele, duas escovas de dente. Duas escovas de dente. Duas escovas de dente...

Se fosse um filme, na certa nessa hora um diretor menos inventivo usaria do manjado artifício da câmera em primeira pessoa girando em parafuso dentro do banheiro para evidenciar a angústia desesperada do protagonista. Só que isso não é um filme. Isso é a minha vida.

18 de novembro de 2010

SEM SABER O CAMINHO


-Alô? Pai?

-Oi, meu filho. Já chegaram?

-Chegamos. Acabamos de chegar. Mas a gente tá meio perdido aqui, sem saber o caminho.

-Me explica onde vocês estão e pra onde querem ir que eu ajudo.

-Uai, você sabe, Pai. A gente tá aqui no Beco da Paixão e quer ir logo pra Praça do Amor. É perto?

-Não, meu filho. É bem longe. Demora pra cacete.

-Caraca... E como é que a gente faz pra chegar lá?

-Você tá vendo as duas ruas que saem do Beco da Paixão?

-Tô. Tô de frente pra elas.

-Então... Se você entrar à esquerda vai dar de cara com uma rua que vai até um parque bonito, florido, uma beleza!

-Mas é uma rua de lama, Pai!

-Isso mesmo. De lama.

-É por ela então que eu vou?

-De jeito nenhum! A rua de lama é só pra quem vai pro Parque das Tentações. Vocês querem ir pro outro lado.

-Entendi. Então é só pegar a outra, né?

-Isso. Uma rua toda esburacada, chama Alameda da Privação. Segue nela sempre reto, sem fazer curva nenhuma, nenhum desvio. Aí é só pegar o Túnel da Resignação e seguir toda vida.

-Toda vida, Pai?

-Toda vida, filho.

29 de setembro de 2010

O TEMPO AO LONGO DO TEMPO

Houve um tempo em que todo mundo tinha o mesmo relógio. Era o sol. O aborígene acordava na Austrália, saía da sua caverna e olhava pra cima: “é de manhã”. O esquimó saía do seu iglu, se é que naquela época já existiam esquimós e iglus, dava uma espiada no céu e sentia a fome do jantar. Era assim: toda a humanidade e um só relógio. Funcionava. Tanto funcionava que estamos aqui, eu e você, pra provar.

Passou um tempo e inventaram de colocar um relógio em cada cidade. Ficava bem na Igreja, e vinha com um sino. O badalo tocava um mesmo som pra todo mundo ao mesmo tempo, e avisava pra vila inteira que era hora de rezar, pra quem era do sagrado, ou de pecar, pros que eram do profano. Cada um com seu costume, seu caminho, mas todos os conterrâneos seguindo o mesmíssimo relógio.

Mas acontece que, de tanto seguir badalo de sino, as pessoas começaram a ficar apegadas demais a essa história de horário. Horário pra isso, hora pra aquilo, de maneira que não se contentavam mais em ficar sabendo a hora só de hora em hora, não! Ainda por cima dependendo da vontade do padre: inventaram o relógio de parede. Assim podiam acompanhar de perto a passagem do tempo, cada minuto, até os segundos. Veja você: a mania era tanta que tiveram que inventar até um ponteiro de informar os segundos. E um relógio em cada casa. O horário podia até variar um pouquinho de uma casa pra outra, de um relógio pro outro, mas pelo menos era compartilhado pelos membros da família. O problema era quando alguém saía. Dava um desespero danado de não poder acompanhar mais os minutos, os segundos...

Pra resolver isso, bolaram um novo conceito: o relógio individual. Cada um tem o seu. Começou sendo de bolso, depois virou de pulso, e agora pode ser visto embutido em telefones celulares e demais engenhocas tecnológicas. Com essa maravilhosa invenção, cada ser humano no planeta pode acompanhar em tempo real a sua vida passando. Ufa! Enfim podemos esquecer do sol e do sino, podemos até matar o cuco.

O relógio, que já foi um pra todo mundo, agora é um pra cada um. Cada um por si. O tempo também já não é de todo mundo: cada um tem o seu. E acho que isso explica muita coisa...

24 de setembro de 2010

SOBRE AS COISAS ÚTEIS

‎-Isso serve pra quê?

-Pra nada.

-Pra nada mesmo?

-É. Pra nada.

-Então eu quero.

1 de junho de 2010

COMO TODA QUINTA

Como toda quinta, saiu direto do escritório para o supermercado onde fazia as compras da semana. Era sempre assim. Quinta era o dia em que seu marido viajava a trabalho, e Consolação aproveitava o pretexto das compras pra preencher a noite solitária. Era a noite que passava invariavelmente sozinha, mas não achava aquilo de todo ruim. Na verdade, encarava até com bons olhos aquela ausência semanal: era momento único, bastante propício para espairecer, divagar, tentar pensar na vida com mais calma, sem a inevitável interferência determinada pela volumosa presença do consorte. “Botar as idéias em ordem”, era o que ela gostava de dizer.

No carrinho do supermercado, entre gôndolas de laticínios e pescados, entre amaciantes e embutidos, começou a fazer sua própria terapia. Inquieta, como toda quinta, pensou na vida que estava levando. Mais do que isso: pensou em todas as vidas que não estava levando. De um lado o que havia de concreto: seu trabalho no escritório, seu marido, a possibilidade de uma filha. Do outro lado o devaneio, tudo que uma outra vida poderia oferecer que não fosse o seu trabalho no escritório, seu marido e a possibilidade de uma filha. Não que estivesse desanimada com a realidade. Morria de medo de se tornar uma dessas mulheres que responsabilizam o marido pelos seus próprios fracassos, que usam o casamento como desculpa para o abandono de sonhos importantes. Esse tipo de covardia não era com ela.

Justamente pra evitar isso é que gostava de pensar sempre a respeito do caminho que estava traçando pra sua vida. Traçando, sim, porque fazia questão de sentir-se no comando da situação. Encontrava sossego na ilusão do controle. Parecia-lhe abominável e assustadora a idéia de uma vida ao sabor do acaso, na qual os eventos se sucedessem sem que tivessem sido, por ela, programados. E por isso lhe eram tão importantes essas meditações nas noites de quinta.

Chegou em casa aflita, carregando sozinha todas as sacolas e pensamentos. Aos poucos, foi tentando organizar tudo. Foi ajeitando vagarosamente no lugar devido compras e reflexões. Nem tudo coube.

Depois, como toda quinta, começou a chorar. Deitou-se na cama, cobriu o rosto com o edredon e deu início à epopéia semanal do pranto. Era sempre a mesma agonia com hora marcada, o mesmo choro alto, igual ao de criança quando machuca. Gemeu, rolou na cama, soluçou, tanta lágrima que chegou a arder-lhe a pele. Ficou assim até dormir.

Na manhã seguinte acordou refeita. Eufórica. Como toda sexta.

26 de maio de 2010

VENENO REMÉDIO

Saiu do consultório com uma prescrição médica no bolso e uma esperança na cabeça. Precisava comprar urgentemente aquele remédio que, de acordo com o Doutor, seria finalmente responsável pelo seu alívio. Àquela altura, a dor já ultrapassava em muito o limite suportável. Havia alguns dias já vinha pensando que, se continuasse daquele jeito, não valeria a pena dar continuidade à sua vida. Tinha ouvido falar de dores paralisantes, o que definitivamente não era seu caso: a sua fazia-o dançar. Não conseguia ficar parado. Era como o personagem de Nelson Rodrigues, que parecia dançar mambo ao manifestar seu desespero.

Desde o início das crises que sua biografia se resumia à resignação: ora sentir a dor lancinante, ora esperar por ela. E essa expectativa da dor lhe era tão horrenda e massacrante quanto a própria. Pela primeira vez cogitava se matar. Mas agora, ao que tudo indicava, não seria mais necessária tão drástica medida. O Doutor havia prescrito uma droga nova, que vinha sendo utilizada com grande sucesso em casos como o de Dorval.

Tão logo chegou à farmácia, foi lançando mão da receita médica e entregando, quase orgulhoso, ao farmacêutico no balcão. Ele leu, entrou para a sala do estoque e em poucos segundos voltava trazendo consigo a caixinha salvadora, que para Dorval era o passaporte para a vida. Entregou-a, mas não devolveu a receita médica: “É medicação com tarja, meu senhor. Vai só o remédio, a receita fica.” Dorval ficou preocupado. Em toda a sua vida, não se lembrava de episódio parecido, em que o farmacêutico tivesse retido a receita médica. “Deve ser um remédio muito forte mesmo”, pensou.

Chegou em casa ansioso para tomar logo o comprimido, na esperança da interrupção de suas crises, vislumbrando poder voltar a desfrutar novamente da euforia da saúde, coisa que ele agora sabia como poucos valorizar. Tinha a convicção de que saberia extrair do corpo saudável a mesma sensação de prazer e alucinação experimentada e relatada por quem injetava heroína pela primeira vez.

Antes de tomar o remédio, entretanto, em virtude da curiosidade aguçada pela retenção da receita médica pelo farmacêutico e pela tarja na caixa do remédio, resolveu ler a bula. “Os efeitos colaterais são ganho de peso, dificuldade de concentração e memória, tremor, sedação, problemas de coordenação, distúrbios gastrointestinais, perda de cabelos, leucocitose benigna, acne e edema. Também foram relatadas alterações eletrocardiográficas e hipotiroidismo. Pode produzir convulsões, coma e por fim a morte”. Ficou paralisado. Mas precisamente naquele momento é que se revelava, nua e crua, a real dimensão do seu problema. Pois aquele veneno, uma substância capaz de causar coma e morte, era algo que seu médico havia receitado para que ele melhorasse. “Se um veneno desses é o que vai me aliviar, então posso ter certeza que a minha situação está mesmo péssima”, concluiu. E tomou o comprimido.

11 de setembro de 2007

NOMES EM SÉRIE

Cheguei apressado ao escritório e foi aí que vi, em cima do teclado do computador, o tal recadinho anotado com a letra insegura da Vânia, a secretária-faxineira, num pedaço de papel: “Léo te ligou. Pediu pra você retornar a ligação. URGENTE!”

Liguei imediatamente pro celular da Vânia, a secretária-faxineira, pra saber o complemento simples e indispensável daquele pedaço de informação anotado no papel:

-Vânia, sou eu!
-Oi, Patrão. Em que posso estar te atendendo?(Vânia, a faxineira-secretária, achava chique falar tudo no gerúndio).
-É que eu vi aqui o recado que você deixou, Vânia, mas eu preciso saber qual foi o Léo que me ligou.
-Como assim qual Léo, senhor?
-Uai, eu conheço milhares de Léos, Vânia! Preciso saber qual deles me ligou pra poder retornar essa tal ligação “urgente”.
-Olha, infelizmente isto eu não vou poder estar te informando, Doutor. Só sei que era Léo.

E foi assim, no meio dessa aflição de não saber qual dentre os trinta e sete Léos que eu conheço havia me ligado, que percebi uma verdade nítida e esmagadora: já não se fazem mais nomes como antigamente. Ah, há quanto tempo não se vê mais um Segismundo, um Bartolomeu, uma Aracy! Tivesse me ligado um Bartolomeu e certamente seria ele o único Bartolomeu que eu conheço. Na pior das hipóteses, haveria dois Bartolomeus. E feliz daquele que tem o prazer de possuir em sua roda de amigos duas pessoas com esse nome histórico e teatral.

Pois eu dou uma rápida olhada em minha agenda e encontro 37 Leonardos, 45 Rodrigos, 22 Julianas e 74 Marianas! Não bastasse usarmos todos as mesmas roupas, assistirmos às mesmas novelas, desejarmos os mesmos tênis e morarmos nas mesmas casas, agora, pasmem, temos todos os mesmos nomes. Somos uma infinidade de Marcelos, Felipes e Letícias. Produzimos em série até as nossas alcunhas. O processo de uniformização está completo: somos todos iguais e, o que é pior, almejamos ser iguais. Estranhamos os nomes raros e fazemos até piada, quando a verdadeira estranheza está justamente no fato de termos todos os mesmos oito ou dez nomes e acharmos isso normal. Engraçado e bizarro é um país só de Dudus.

Lembro-me agora da família do meu avô. Essa sim uma família de nomes únicos, límpidos e adjetivos. Sim, adjetivos, uma vez que qualificavam a pessoa, distinguiam-na na multidão de outros nomes. Vejam bem que beleza: Eldonícius, Polinícius, Semirames, Magdala, Zenaide e Rhéa Sylvia. Todos primos, parte de uma mesma família. Percebam: Magdala só há de ser uma. Rhéa Sylvia também não há duas. E se alguma voz gritasse de longe, bem de longe, “Eldonícius, o almoço está pronto” certamente o saudoso primo do meu avô saberia que aquela haveria de ser a voz da sua querida mãe. Hoje em dia, tal fato seria impensável. Uma mãe que ouse berrar por aí na busca de um Leonardo para o almoço certamente haverá de ter em sua porta em questão de segundos toda uma horda de Leonardos famintos.

Distinto tio de também distinto nome que rodava pra lá e pra cá em seu fusca amarelo cocô era o Amílcar. Vejam que digno nome, também hoje condenado a um indevido ostracismo. Mas falei no fusca e preciso completar. À medida que foi envelhecendo, nosso querido Tio Amílcar, que já era baixinho, foi encolhendo. No fim da vida, era menor que um gnomo. De tal forma que ao pilotar o seu tradicional fusca amarelo cocô era impossível visualizar o motorista. O “fusca-fantasma” fazia bruscas conversões, balizas milimétricas, arrojadas ultrapassagens e a alegria das crianças do bairro. Não se sabe como...

Volto à minha agenda. Começo, atenciosamente, a repassar todos os Leonardos na tentativa improdutiva de localizar aquele que me havia ligado e percebo: não há em minha agenda, ou melhor, em todo o território brasileiro, um único elemento que seja conhecido simplesmente como “Léo”. É absolutamente necessário qualificar o nome com algum complemento: Léo Gordo, Léo Cabeça, Léo Bago-de-Boi, Léo Jeba, e por aí vai.

Mas toca o telefone:
-Alô!
-Alô. Quem fala?
-É o Léo, pô! Deixei recado aí pra você me ligar urgente.
-Qual Léo?
-Como assim qual Léo? Só Léo, uai.
-Só Léo?
-É! Só Léo.
-Então deve ser engano, meu filho. Não conheço nenhum Léo. Passar bem...

25 de junho de 2007

O NOSSO CÉU

Estavam os dois deitados na cama de uma pousada linda, cravada numa montanha de Minas, ele no colo dela. Ela fazia cafuné, brincando com os cachos do cabelo dele. Ele, com aquela felicidade calma de quem se sabe no lugar certo, acompanhava com olhos lentos o passarinho que brincava na varanda. Falou:

- Outro dia vi um filme que retratava o céu de uma maneira interessante. Falava que o céu de cada pessoa é diferente do da outra. Que o paraíso é uma coisa particular, como se fosse um somatório das coisas que a gente mais gosta aqui na Terra. Aí eu fiquei pensando como é que seria o meu céu...
- E como ia ser?
- Ah! Pra começar não ia ter carro, nem asfalto, nem engarrafamento. Todo mundo andaria a pé, ou de bicicleta e o chão ia ser de grama, pras pessoas andarem mais descalças.
- É... Isso ia ser bom mesmo. No meu também não ia ter carro não.
- No meu céu também não ia ter revólver.
- No meu também não.
- E no meu céu ia ter uma casa com uma jabuticabeira no quintal. Sem falar que todo mundo ia ter a casa que quisesse. E se alguém não quisesse ter casa, então que não tivesse. E o seu céu?
- No meu céu não ia ter coluna social.
- Nossa! Perfeito. Como é que eu não tive essa idéia?
- E também não ia ter o Faustão.
- Putz! Tô achando que eu vou querer ir pro seu céu. Muito boas as suas idéias... Quem sabe a gente não junta as nossas idéias e faz um céu em dupla?
- Depende... Preciso saber mais sobre o seu céu então.
- Bom, no meu céu ia ter Galo e Cruzeiro todo domingo, e o Galo ia ganhar sempre de goleada, só com gols humilhantes do Reinaldo.
- Uai, e o Éder?
- Tá bom. Do Reinaldo e do Éder.
- Que mais?
- Ah... Ia ter todos aqueles butecos que a gente vai lá em BH. Com a diferença que a gente ia poder tomar todas as cervejas mais geladas com torresmo sem preocupar com barriga nem coração.
- E caipi abacaxi? Não vai ter? Se não tiver, não vou.
- Claro que vai ter! Vê se eu ia esquecer disso!
- Ah bom.
- Também não vai ter banco, bolsa de valores, inflação, risco-Brasil, nada disso. Aliás, nem dinheiro vai ter.
- É. Melhor não mexer com dinheiro não, porque quando tem dinheiro no meio vira um inferno. Só de pensar em banco, fila e boleto pra pagar já me dá enjôo.
- Dois então. Mas pensa mais coisa aí... Me ajuda também, uai! Só eu que dou sugestão...
- Tá. Eu quero que tenha comida japonesa...
- Boa! De preferência combinados de salmão. E muito saquê.
- Saquê é fundamental...
- E depois do japa não pode faltar você peladinha com aquele tesão que você fica quando toma saquê...
- Mas será que no céu pode?
- Claro que pode, uai. O céu é nosso! Aliás, deve! Porque se não puder transar então não é céu: é inferno!
- É, tem toda a razão... Sem transar é inferno mesmo. Tô adorando esse nosso céu!
- Sabe de outra coisa? No nosso céu tem que ter nós dois deitados nessa cama, eu no seu colo, você fazendo cafuné e brincando com o meu cabelo e a gente conversando sobre o céu. Porque pra mim não tem jeito de o céu ser muito melhor que isso aqui não...
- É. Não tem não... Acho que essa cama com você já é um pouquinho de céu mesmo.
- Por mim eu passava o resto da vida aqui com você.
- Quem dera...

E assim dormiram, um enrolado no corpo do outro, como se fosse um bicho só.

Hoje, três meses depois, já não estão mais juntos. Ele está solteiro, saindo quase toda noite com os amigos, enchendo a cara e ficando cada dia com uma mulher diferente. Tem umas que nem o nome ele lembra. Ela? Ela está namorando um gerente de banco.

30 de maio de 2007

COITADO!

Viu o sinal amarelo e acelerou. Não queria chegar atrasado porque estava correndo feito um louco atrás daquela promoção no seu trabalho, em uma gigante corporação multinacional, precisava paparicar o chefe. Mas não deu. Foi obrigado a frear e esperar o interminável tempo de um sinal vermelho. “Tempo é dinheiro”, pensou. Apático, viu o malabarista do sinal vermelho se aprontando para mais um número. Sim, para mais um número. Já era rotina: todo dia passava por ali naquele mesmo horário e todo dia via o mesmo número mambembe daquele acrobata que devia ter, como ele, uns 25 anos. Usava uma roupa colorida de circo, mistura de pierrot com bobo da corte, e ateava fogo aos malabares naquele exato momento.

De dentro do seu carro, os vidros fechados, as portas travadas e o ar condicionado ligado, ao ver bem na sua frente pela centésima vez aquele rapaz da mesma idade que ele fazendo malabarismo no sinal, o jovem funcionário sentiu pena. Sim: teve muita pena. “Que bosta de vida, a desse cara! Como é que pode uma pessoa levar uma vida assim? Acordar todo santo dia na mesma hora, vestir essa mesma roupa de palhaço pra fazer a mesma coisa de sempre!” Enquanto pensava, ficava atento ao malabarista que, com seus movimentos precisos, criava desenhos de fogo no ar. Parecia ver aquela cena em câmera lenta. “Coitado! Vai passar a vida toda fazendo isso e nunca vai ter o que eu tenho”.

O número acabou brilhantemente e o malabarista passava de carro em carro com seu chapéu de bobo, na tentativa de recolher um trocado. As janelas dos carros permaneciam fechadas. A grande maioria das pessoas nem olhava, nem reconhecia a existência daquela pessoa. Era como se fosse invisível. Talvez não olhassem para não ter que encarar realmente a sua existência. Alguns até deram algum dinheiro pela greta da janela espelhada, mas sem olhar.

Já se conheciam de vista, de tanto se encontrarem por ali. O malabarista se aproximou do carro do jovem funcionário: lá estava ele como sempre com seu indefectível terno preto, não obstante o calor de fritar ovo no asfalto, e o impecável cabelo engomado, penteado pra trás, e o suor escorrendo pela testa enquanto tentava afrouxar o opressivo nó da gravata, como sempre. Também como sempre estendeu o chapéu e recebeu do jovem funcionário algumas moedas. O valor de sempre. Cruzaram os olhares e fizeram um para o outro, como sempre, uma ligeira reverência, balançando positivamente a cabeça:
-Oi!
-Opa!


O sinal abriu e o rapaz arrancou seu veículo. Afinal, ainda tinha que paparicar o chefe. Sentado no meio fio enquanto contava os trocados recebidos, o malabarista pensava naquele jovem funcionário que todo santo dia passava por ali, fosse chuva ou sol, com seu terno preto e seu cabelo engomado. Ficou triste e teve dó do outro. Isso mesmo: também ele sentiu muita pena. “Que bosta de vida, a desse cara! Como é que pode uma pessoa levar uma vida assim? Acordar todo santo dia na mesma hora, vestir essa mesma roupa de palhaço pra fazer a mesma coisa de sempre!” Enquanto isso, imaginava-o no seu emprego, enclausurado em algum cubículo calorento e recebendo ordens de algum chefe chato, realizando as mesmas tarefas burocráticas de sempre. Parecia ver aquela cena em câmera lenta. “Coitado! Vai passar a vida toda fazendo isso e nunca vai ter o que eu tenho”.

E é isso. Todo dia se encontram, e todo dia se despedem desse jeito: um deprimido com a miséria do outro.


14 de setembro de 2006

ESTÁ DECIDIDO

Está decidido: nunca mais a verei! Nunca mais vou brigar com ela aquelas mesmas brigas. Nunca mais vou olhar na cara dela. Nunca mais vou convidá-la pra sair. Nunca mais ela vai receber um telefonema meu. Nem e-mail, nem mensagem, nem presente, nem carta, nem recado. Nada.

É irreversível. Nunca mais passarei horas no carro em frente à sua casa esperando que ela fique pronta. Não vou mais sair com ela pra beber à toa e jogar conversa fora. Nunca mais vou ficar preocupado com os seus problemas. Não vou mais ligar pra ela do meio da torcida do Galo pra falar o resultado do jogo. Nunca mais vou falar pra ela o quanto ela é linda. Nunca mais vou apertar com força aquela mão, nem morder aquele ombro. Nunca mais vou sentir aquele perfume único, nem elogiar cada roupa mais bonita que a outra.

Está decidido: nunca mais ela vai fazer massagem no meu pé. Nunca mais vai ouvir comigo aquela música da Portela. Não tem mais jeito. De hoje em diante, nunca mais quando o telefone tocar eu vou esperar que seja ela. Nunca mais vou escutar o que ela fala, nunca mais vou discordar dela, nem concordar. Não vou mais ficar horas estudando no mapa do Brasil o melhor roteiro pra nossa viagem no Reveillon. Não vou mais ficar escolhendo com ela os nomes que os nossos filhos teriam. Acabaram-se todos os planos.

Está mesmo decidido: nunca mais a verei. Ontem, no velório tão triste, foi a última vez. Ela estava imóvel. E parecia perfeita para se levantar e vir me dar um abraço. Por que não veio? O que faltava àquele corpo que impedia o seu sorriso? Pra que serve tanta lágrima?

Apertei com toda a força do mundo sua mão tão sem calor e me despedi. Infelizmente não depende de mim. Simplesmente é assim. Está decidido: nunca mais sentirei ciúme.

31 de agosto de 2006

DOIS EM UM

De um lado Rubem Braga, do outro Nelson Rodrigues.
De dia Mário Quintana, à noite Rubem Fonseca.
Hoje Carlos Drummond, amanhã Augusto dos Anjos.
Tão diversos um do outro,
seres pensantes, sentintes e solidários
com outros seres iguais e inconscientes.
Sempre reagindo, de maneira singular,
a estímulos e provocações comuns.
Mas sempre reagindo.
Assim somos nós,
eu e mim-mesmo.
Dois em um.

17 de agosto de 2006

A ASSASSINA

Quando eu acordo já começo a ficar tenso. Sei que vem pela frente mais um longo dia em que ela vai fazer de tudo pra me matar. Assim tem sido há muito tempo, e sei que hoje não vai ser diferente. O coração já começa a bater forte no café da manhã, porque sei que vou sair de casa. Vou ter que abandonar o único ambiente em que me sinto protegido daquela assassina implacável.

Antes de entrar no meu carro, ainda na garagem, faço uma inspeção completa: olho debaixo e dentro do veículo e dou uma conferida no porta-malas pra ver se não tem ninguém. Podem me chamar de paranóico, mas já ouvi vários relatos de latrocínios que aconteceram desse jeito. Não vou deixá-la me vencer assim tão facilmente. Sei que ela mata mesmo e que se eu bobear serei presa fácil.

No engarrafamento, parado no sinal, mantenho sempre fechados os vidros do meu carro. Escondido detrás da película escura, será mais difícil ser alvejado por um de seus homens, desses que pedem no sinal e atacam com cacos de vidro na garganta quando a gente menos espera. Vivo com taquicardia, não relaxo nunca, sempre atento procurando evitar seu próximo ataque. Vários por aí mal sabem que estão jurados de morte e ela, homicida eficiente, vai eliminar a todos, um por um.

Por isso me preocupo tanto quando chego ao trabalho. Obsessivo, sempre caminho olhando para trás, tentando me prevenir contra a abordagem repentina de algum suspeito. Qualquer desatenção me custará a vida, pois há anos ela me persegue diariamente, mas há anos venho conseguindo adiar o meu fim. Seus assaltantes e assassinos estão aí, à solta, esperando o menor descuido para concluir o meu destino.

No fim do dia, volto pra casa dirigindo com cuidado, porque sei que ela tem espalhado pelo trânsito alguns de seus matadores mais eficientes. Quando não matam no acidente, matam na briga de trânsito. É tão comum que as pessoas já nem se espantam mais. Mas eu não vou me entregar. Mais um dia está terminando e eu já estou próximo de casa. Minha casa é minha fortaleza. Pago caro pra ter porteiro no prédio, grades pontiagudas, um alarme barulhento e convênio com uma firma de segurança particular exatamente pra evitar que ela consiga me atingir. Nem na polícia eu confio mais. No meu apartamento me sinto protegido.

Ufa! Até que enfim: lar doce lar! Agora sim posso relaxar. Aqui não sou mais tão vulnerável. Sinto-me vitorioso por escapar mais uma vez ileso daquela criminosa insensível. Descansado, e menos paranóico, posso fazer um saboroso lanche na padaria da esquina. Lá tem um misto quente gostoso a um preço honesto, ideal para finalizar o dia, e fica logo ali: basta atravessar a rua. Sigo conforme manda o figurino. Só atravesso na faixa de pedestres pra evitar qualquer tipo de problema, afinal, nunca se sabe.

De repente, sinto um vento forte seguido de um baque: fui pego. Como havia dito, ela é sempre uma matadora muito hábil: venceu-me no meu único instante de desatenção. Um motoboy apressado avançou o sinal vermelho em altíssima velocidade e, sem que eu pudesse reagir, me atropelou. Fui atirado alguns metros e bati a base da cabeça no meio fio. Que raiva! Odeio perder! Meu sangue escorre espesso pelo asfalto enquanto o motoboy acelera cada vez mais. Ele fugiu para poder entregar a tempo sua próxima encomenda. Já não consigo me mexer quando chega um sono incontrolável, seguido de uma confusa sensação de alívio. Sinto-me estranhamente bem, meus problemas acabaram. Morto, estou completo. Algumas pessoas param, mais por curiosidade que por caridade, outras apenas seguem seu caminho, em busca da segurança de suas casas.

O que eu tanto temia aconteceu: ela conseguiu me matar. De nada adiantou tanto zelo, tanta obsessão, toda aquela paranóia diária. De nada adiantaram as grades do prédio, o porteiro e aquele serviço tão caro de segurança particular. Ela usou o velho golpe do motoboy apressado para acabar comigo. Na minha luta pela sobrevivência na cidade, eu perdi. E tome cuidado: a cidade também pode matar você. A cidade é assassina.

31 de julho de 2006

VIDA QUÍMICA

Tocou o despertador. Nem parece que eu dormi e já chegou a hora de acordar para trabalhar. Aquela rotina de sempre: banho e depois café da manhã. Um copo de leite desnatado, uma fatia de pão integral com ricota e os primeiros comprimidos do dia. É... Tomo um monte de vitaminas diferentes no café. Uma pra acabar com um tal de radical livre, outra pra evitar a calvície, outra pra tirar pé de galinha...

Mas não paro por aí não. Vou contar como a coisa funciona: no meu caminho pro trabalho, sempre pego um trânsito muito mala. Fico ali parado naquele calor, no meu carro popular sem vidro elétrico, sem direção hidráulica nem ar condicionado, ouvindo buzinas ensurdecedoras às 7:30 da manhã. Tudo isso pra chegar no meu trabalho que é mais mala ainda. O meu chefe então nem se fala: é insuportável. Não tem nada pior que um burro com autoridade. Ganho pouco pra ser humilhado diariamente. Você precisa ver que delícia.

O que me salva, então, é o Prozac. Antes de sair de casa já mando logo um pra dentro, que é pra agüentar esse rojão. Só que com o Prozac eu fico excitado demais e aí, pra contrabalançar, eu tomo dez gotinhas de uns florais de Bach que eu tenho em casa que são uma beleza! Agora sim, posso começar o meu dia.

Logo antes do almoço eu tomo uma anfetaminazinha, bem de leve, pra dar aquela diminuída básica no apetite. Saio pra almoçar feliz da vida, com tão pouca fome que umas folhinhas de rúcula com agrião já são suficientes pra me saciar. Depois do almoço, pra finalizar, não pode faltar aquela xícara gigante de café expresso que me deixa elétrico pra agüentar o batente no turno da tarde.

O problema é que vai chegando o final do dia e o efeito da anfetamina vai passando, começa a bater uma fome negra. Mas comer comida mesmo, de verdade, eu não posso de jeito nenhum, senão eu engordo e todo mundo sabe que no mundo de hoje não tem lugar pra obeso. Gordo hoje em dia só pega mulher se for pagando ou se também for gorda. Todo mundo gosta é daquelas mulheres bem magrelas, que vomitam tudo que comem, com peitão de silicone. Sancho Pança só serve pra ser o engraçado da turma ou o gente boa, e isso eu não quero. Então eu preparo aquele shake Herbalife maravilhoso, que não tem gosto de nada, mas quando bate na barriga vira uma maçaroca que engana a minha fome por mais um tempinho e eu ganho uma sobrevida...

Pronto! Saí do trabalho e agora é hora de passar na musculação para dar aquela malhada. Antes, é claro, eu tomo uma injeçãozinha limpeza, que um amigo meu super sangue bom me indicou. É um anabolizante pra cavalo mangalarga que ele me garantiu que não faz mal nenhum, e nele eu confio porque afinal de contas já tem um tempão que ele é faxineiro lá da academia. Na verdade, a minha pele tá ficando meio estragada, minhas costas meio peludas, mas em compensação tô ficando com um bíceps bombante e um abdômen que parece um tanque. Quando acaba a malhação eu devoro uma barrinha de proteína que é a minha última refeição do dia.

Satisfeito da vida, saradão, eu tomo um banho e já ligo pra turma da academia pra marcar a balada. Hoje vai tocar aquele mesmo Dj da semana passada e da retrasada que a mulherada adora. O cara acelera com força! O bom é que a música é muito alta, quase ensurdecedora. Isso me salva, porque não dá pra ouvir nada e aí eu nem preciso conversar com o mulherio. Normalmente eu não bebo, porque dá muita barriga. Prefiro tomar um docinho, ou uma bala, o que estiver mais à mão, e aí começo a delirar com aquele bate-estaca. Parece que o cara tá tocando dentro da minha cabeça. A primeira menina que me dá meia olhada já sabe que eu passo o rodo. E passo mesmo, quero nem saber!

Aí é garantido, com essas meninas de hoje, que vai acabar no motel. E eu, que não sou bobo, já ando com o Viagra na carteira e mando ele pra dentro na hora que eu tô saindo com a gata da boate, que é pra já chegar no motel em ponto de bala. Acelerado por causa do doce e bombando do Viagra, fica fácil. Pego a mulher de um jeito que ela vai chegar em casa destruída, detonada. Eu sou o cara!

O único problema do Viagra é que depois dá uma dor de cabeça que é um espetáculo. Parece que o tampo vai explodir. Mas é pra isso que existe a Neosaldina. É só tomar uma neusa que em meia hora passa a dor. Aí eu deito. Mas não consigo dormir, porque o efeito do doce ainda não passou e eu fico ouvindo meu coração bater como se fosse um terremoto. Abro a gaveta do criado-mudo e pego a cartelinha do Dormonid. Tomo um, dependendo dois, e durmo igual um anjo. No dia seguinte, quando eu acordo, repito tudo outra vez. E não consigo nem imaginar como meus pais e meus avôs, ou até os homens das cavernas faziam pra viver sem essas pílulas milagrosas, esses comprimidos maravilhosos. Viva a indústria farmacêutica! Viva a química!

9 de junho de 2006

O JARDINEIRO

"Enterrei meu canarinho
junto à roseira.
Agora, a primeira rosa
vai amanhecer
cantando."
(Yeda Prates Bernis)

Quando a gente acorda, e lembra, sente aquela vontade de chorar. Mas chorar por quê? O motivo primordial do lamento é algo que às vezes fica difícil entender. Vejo o rapaz basco de pé diante da Guernica, de Picasso: ele chora. O pai que assiste inquieto ao nascimento da filha também chora. A lavadeira do interior de Minas que viaja uma eternidade para, pela primeira vez na vida, ver o mar. Olhando com os pés molhados a força da rebentação salgada, ela ao mesmo tempo chora e ri.

É isso. O ser humano tem esse dom de sentir. O belo também faz chorar. E quando olho pra trás, tentando recuperar tudo o que posso da vida do meu avô, só o que vejo é beleza: a vibração da família, a elegância no trato com as pessoas, a dedicação incansável ao trabalho e a pureza da caridade. É aquela sensação de que tudo deu certo. Mas na vida real sempre me pareceu impossível um mundo assim, tão perfeito. Talvez tenha havido alguma feiúra, e dela ele nos tenha poupado.

Viveu como um jardineiro teimoso, plantando sementes coloridas nesse jardim-mundo preto e branco. E cada uma dessas sementes um dia se tornará árvore. E essas árvores darão os mais diversos frutos, das mais diversas cores e sabores. É assim o milagre da vida. Através do esforço silencioso e constante desse jardineiro que lutou, sem muita ajuda, para transformar em floresta esse nosso deserto. E é por isso que dá vontade de chorar. Chorar sim, de tão bonito.

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