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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil

10 de agosto de 2004

PAULINHO BONDADE

Paulinho Bondade nem é tão bom assim. Tem esse apelido desde os tempos de escola. Não porque fosse bondoso, mas devido à existência, no colégio, de um rapaz notoriamente bandido, que era conhecido na turma pelo singelo apelido de Paulinho Maldade. Apesar do apelido, Paulinho Bondade nunca foi o que se pode chamar de homem exemplar. Sempre foi autor de frases e cenas absurdas e inacreditáveis, que causavam grande espanto em todos, menos nele.
Aos dezessete anos, conheceu uma menina de dezesseis, Nilza, que mudaria de vez a sua vida. Nilza era bonita e gostosa, tinha pele clara e longuíssimos cabelos negros. Mas negra também era sua personalidade. Era dona de um gênio difícil, que misturava autoritarismo com doses cavalares de insegurança. Tratava Paulinho Bondade à base de gritos, unhadas e beliscões. Quanto melhor ele se comportava, mais ela achava que Bondade estava aprontando, e mais gritos e beliscões ele tinha que aguentar. Vivia, por isso, repleto de hematomas.
O problema é que, a partir daí, durante os quase dez anos que se sucederam, desenvolveu-se entre os dois uma relação doentia. Quanto mais Nilza infernizava a vida de Paulinho, mais dependente dela ele se sentia. Alguns defendiam a tese de que Bondade era, no fundo, um masoquista, que sentia um intenso prazer nos maus tratos da moça. Mas quem realmente o conhecia sabia que, a bem da verdade, o que realmente prendia Paulinho àquela louca era outra coisa: o sexo. Eis a verdade: como brigavam todo santo dia, havendo motivo ou não, faziam as pazes diariamente no ato sexual. Era justamente esse ato sexual diário, sempre encharcado de ódios, amores, violência e dor, que parecia indispensável para o Bondade. Ah! E havia ainda um agravante, o golpe fatal de Nilza: no sexo, ela se deixava subjugar por Paulinho. Aquele era, de fato, o momento de glória e redenção do rapaz. Muitas vezes, os amigos o chamavam num canto, na tentativa vã de afastá-lo daquela carrasca. Em coro, apelavam:
-Ô Bondade! Larga essa encrenca, moço! Isso não é vida, não.
E, nessa hora, Paulinho retrucava, eufórico:
-Vocês falam isso porque não fazem idéia do que eu sinto quando pego a Nilza de quatro, seguro no cabelo dela vendo aquela bundinha perfeita e o rosto olhando pra mim com uma carinha de safada que quer ser dominada. Ali, meu filho, é a minha hora! Eu posso sofrer o que for, mas nessa hora eu sou o cara! E é nisso que eu penso o tempo todo. É isso que me tira da cama todo dia de manhã!
Os amigos, perplexos, nem tinham mais o que dizer. Depois dessas declarações palpitantes do Paulinho, havia até quem saísse de lá invejando a situação do rapaz. Outro dia, houve quem balbuciasse:
-Pelo menos ele tem emoção na vida. Pior sou eu que fico enrolando até mais tarde no trabalho, esperando que a minha esposa durma antes de eu chegar, para não precisar comê-la.
E os outros ainda completaram:
-E a minha mulher? Era linda e gostosa e hoje é um bucho impraticável. Passa a vida pensando no que vai comer de sobremesa!
-E uma coisa nós não podemos negar: a Nilza pode ser o que for, mas é gostosa pacas!!
-Ah, isso é verdade. O Bondade que me perdoe, mas que rabo é aquele, hein?!

A verdade é que Nilza era, sim, sob o aspecto do talento sexual, uma mulher incomparável. Desde a sua primeira vez, com o próprio Paulinho, havia evoluído no domínio dos afazeres sexuais de uma maneira que chegava a espantar o namorado. Mas ele, claro, adorava isso e se submetia de forma incondicional aos caprichos inexplicáveis da moça, deixando-se humilhar e humilhando-se publicamente, na frente de quem fosse. A situação era de tal forma desconfortável que até o pai de Paulinho, seu Weber, homem discretíssimo, já não agüentava mais. Após tantos anos vendo o filho sofrer e se humilhar perante todos, não agüentou mais e fez a declaração bombástica: -Preferia ter um filho gay! Assim não dá. É sofrimento demais!
Do outro lado, Dona Isolda, mãe de Nilza e figura manjada nas colunas sociais da cidade, também condenava a relação do casal, esbravejando: “Minha filha, larga esse rapaz enquanto há tempo! Esse sujeito é descontrolado. Qualquer dia acontece uma tragédia daquelas! Ai, que vergonha...”. A aflição de Dona Isolda era tal que se recusava a abrir o portão da casa para Paulinho. Enquanto Nilza não tomasse uma atitude, ele ficava do lado de fora, fizesse chuva ou sol, fosse dia ou noite.
Apesar de todo esforço coletivo contrário ao relacionamento, o fato é que Paulinho e Nilza se aturavam e até se julgavam felizes. Até que...
Até que um dia, sem dar a menor satisfação, Nilza pôs um fim no relacionamento. Bondade, completamente atônito, não sabia o que fazer. Como já era de se esperar, se humilhou como jamais havia feito. Mandava flores, deixava recados, ajoelhava-se na porta do trabalho de Nilza com presentes caríssimos, gritava, esperneava: “Pelo amor de Deus, Nilzinha! Pelo amor de Deus!”. E nada. Nilza estava impassível perante o sofrimento do ex-namorado. Nos momentos da maior degradação de Paulinho, fazia cara de nojo e dizia: “Tenha dó, meu filho. Tenha dó”.
Ele ainda inconsolável ligava para os amigos numa última tentativa de aplacar seu sofrimento. Chorando como uma viúva, tomado por uma constipação monumental, soluçava ao telefone: “Como é que eu faço sem Nilzinha? Como é que eu vivo sem aquela bunda, sem aquele gênio maldito da minha Nilzinha? Me responde!” Os amigos ainda tentavam: “Calma, Bondade. Calminha aí. O que não falta nessa cidade é bunda boa e mulher chata! Aliás, é o que mais tem, viu?” De nada adiantava.
Eis que um dia toca o telefone de Paulinho. Era um amigo de longa data:
-Paulinho! Como vai? Tudo bom aí, filhão?
-Vou levando. Vou levando. – respondeu resignado.
-Vem cá. E aquele namoro antigo com a Nilzinha, como é que anda?
-Tá perguntando por quê, hein?
-Responde, meu filho. Responde.
-Terminou. Levei um baita pé na bunda! Estou que não me agüento mais! Agora me diz: que é que foi?
-É que...
-Desembucha logo, homem de Deus! Anda!
-É que ela está hospedada no mesmo hotel que eu, aqui em Ouro Preto.
-Ouro Preto? Sozinha ou acompanhada? – perguntou apavorado.
-Acompanhada.
-Puta que o pariu! Com quem? Anda, responde! Com quem?
-Com o...
-Fala logo, filho da puta! – gritou babando.
-Com o Taveira.
-Taveira? Que Taveira é esse, diabo?- a essa altura, Paulinho Bondade já estava no último estágio da taquicardia. Achava que nada podia ser pior do que aquilo. Mas podia...
-Taveira. Aquele professor de yoga dela, tá lembrado? –retrucou o amigo.
Paulinho não agüentou a pressão. Desligou o telefone na cara do amigo e deu início a uma crise nervosa. Ficava imaginando o Taveira, um sujeito alto, musculoso e elástico experimentando as mais acrobáticas e impensáveis posições sexuais com a sua pura e imaculada Nilzinha, saciando-a de uma forma que ele nunca fora capaz. Nas fantasias de Bondade, o Taveira, além das qualidades já citadas, possuía ainda um pênis colossal, que parecia partir ao meio sua pobre namoradinha em coitos mais engenhosos que os do Kama Sutra.
Pois bem. Paulinho então tomou a drástica decisão: “Essa humilhação eu não agüento! Tudo, menos isso!”. Como um vingador experiente esperou sem alarde o retorno dos dois e passou a vigiar a rotina do novo casal. Para amigos e familiares, transparecia uma felicidade efusiva e palpitante, deixando muito satisfeitos todos aqueles que dele gostavam. Arranjou até uma namoradinha nova e calmíssima, a Mônica, com quem passeava pra lá e pra cá irradiando um sorriso escancarado. Seu pai, seu Weber, já dizia numa alegria cega e delirante: “Agora sim! Sou um pai felicíssimo. Com a graça de Deus, Paulinho deu um jeito na vida. Livrou-se daquela megera e encontrou essa santa! A Mônica sim é uma mulher com ‘M’ maiúsculo!”.
Mas não era nada disso. Tudo teatro. Todas as noites, e repito: todas as noites Paulinho chorava em silêncio e babava no travesseiro até o dia raiar. De manhã, numa coriza medonha, tomava seu banho e saía para a rua. Mais um dia de teatro.
Comprou um revólver e uma fantasia de florista e foi bater na casa de Taveira, com a arma escondida no meio do buquê de margaridas. Taveira abriu a porta e ouviu-se logo o estampido. O tiro, certeiro, matou o professor de yoga antes que este pudesse dizer ao menos um “olá”. Nilza, que estava na cozinha, correu para a sala e viu a cena dramática: Paulinho com o revólver na mão e Taveira morto no chão com o queixo dilacerado. Os vizinhos, assustados, correram para o apartamento de Taveira, mas Bondade havia trancado a porta e bloqueado a passagem com a mesa de jantar. Do lado de fora, só o que se ouvia eram os inacreditáveis gritos de pavor de Nilza. De Paulinho, não se ouvia sequer um pio. Os vizinhos tentavam desesperadamente arrombar a porta quando mais dois tiros foram disparados. Tarde demais.
A polícia chegou e conseguiu arrombar a porta. Lá dentro, o que se via era uma cena lamentável: três corpos sem vida estendidos no chão, cada um com um buraco de bala. Em cima da mesa, Bondade deixara um bilhete destinado à Dona Isolda, mãe de Nilza, com os seguintes dizeres:

“Ninguém me humilha mais. Antes de matar, estuprei. Ass.: Paulinho.”



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