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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil

21 de dezembro de 2004

MULHERES DA (MINHA) VIDA

Não sei se sou eu ou se são elas, mas o fato é que o meu histórico com as mulheres é, no mínimo, peculiar. Resolvi fazer um apanhado geral dos meus relacionamentos, relâmpago ou não, e concluí que há entre eles um único fato reincidente: nunca dão certo. E exatamente por isso é que vou aqui recordá-los, um a um, da forma mais leviana possível.
A primeira vez que me peguei pensando numa mulher, na verdade uma menina, foi no pré-primário, eu acho. Eu devia ter uns cinco anos e tinha essa coleguinha linda, com algumas sardas e um cabelo que, para mim, devia ser o mais lisinho do mundo. Chamava-se Cristina Maria. Éramos praticamente inseparáveis na escola, sentávamos sempre perto um do outro durante as aulas e, ao final delas, esperávamos juntos a chegada dos nossos pais enquanto disputávamos animadíssimos partidas de gol a gol usando petelecos e umas bolinhas miúdas de papel.
O fato é que minha avó havia acabado de chegar do Japão, de onde trouxera para mim uma fantástica caneta de doze cores, artigo até então desconhecido no Brasil, que eu usava para fazer desenhos multicoloridos e inveja nos colegas. Qual não foi minha surpresa quando, numa aula de desenho, não encontrei nos meus pertences a tal caneta japonesa de doze cores. Fiquei totalmente desconsolado. Não acreditava naquilo e sabia que, para conseguir outra, só se minha avó desse um pulinho no Japão (e naquela época eu acreditava que o único modo de ir ao Japão era escavando um buraco até o outro lado do planeta). A minha tristeza só passou quando vi um dia minha linda namoradinha, Cristina Maria, desenhando casinhas com a minha rara e reluzente caneta japonesa. Fiquei satisfeitíssimo e fui ao seu encontro para que ela devolvesse minha ferramenta esferográfica. Mas não. Ao invés de devolver-me a caneta, Cristininha berrava escandalosa, clamava pela ajuda da professora dizendo que eu estava batendo nela. Quando eu dizia que a caneta era a que minha avó havia trazido do Japão e que podia provar, ela retrucava cínica e sarcástica: “Você acha que só a sua avó é que vai para o Japão?”
E foi assim que terminou o meu primeiro namoro e começou a minha história de insucessos no amor: com um furto. Isso mesmo, caro leitor: minha primeira namorada, aquele ser belo e dócil por quem eu nutria o mais puro dos sentimentos e cuja simples presença me trazia a mais sincera felicidade trocou o nosso relacionamento por uma caneta japonesa de doze cores.
Levei muito tempo para superar esse primeiro trauma, mas superei. Entretanto, foi só na quarta série (aos dez, onze anos) que fui me apaixonar novamente. Havia na minha sala uma menina que já não era menina: era quase uma mulher. Tanto pela altura quanto pela pujança das curvas que começavam a se apresentar, ela chamava bastante a minha atenção. Um dia, no meio da aula de matemática, eu recebo dela um bilhetinho com os seguintes dizeres: “Você gosta de mim? Sim ou não. Marque com um "x" e devolva. Ass.: Lívia Elisa”. Na escola era assim, a gente sempre sabia o nome e o sobrenome dos colegas. Tremendo de nervoso, marquei um sim e devolvi a ela o bilhete. Nem podia acreditar que uma mulher daquele tamanho ia querer alguma coisa com um menino franzino, quase tísico, como naquela época eu era!
Mas tudo que é bom dura pouco, e comigo não foi diferente. No recreio, transbordando felicidade e quase babando de emoção, fui contar a boa nova ao meu melhor amigo, o Marcinho, que me respondeu com uma pedrada: “É sério? Ela mandou o mesmo bilhete para mim, e eu também respondi que sim”. Ficamos ambos desolados com a infeliz coincidência, mas Lívia, muito mais madura e malandra, conseguiu contornar a situação. Ficou combinado o seguinte: "cada festa eu danço a música lenta com um de vocês" (naquela época ainda não se beijava nas festas da sala).
Dos males, o menor. Saímos, eu e Marcinho, mais ou menos satisfeitos com o moderno acordo uma vez que éramos melhores amigos. Já a Lívia saiu satisfeitíssima, havia feito um negócio da China.
Colocar em prática o acordo foi deveras doloroso. A simples aproximação da data de uma festa cuja preferência no rodízio não seria minha já me causava dores de barriga assombrosas. E não era dor de barriga de vontade de ir ao banheiro, não senhor: aos dez anos senti minha primeira úlcera. Era terrível. Eu sabia que ia ser obrigado a ver minha namorada dançando música lenta a festa inteira com outro e que esse dia estava cada dia mais próximo. E que eles conversariam e ela contaria a ele as histórias mais fresquinhas, mais recentes, que eu nem podia imaginar.
Em compensação, na semana seguinte eu ia à forra. Os segredos mais novos seriam meus, as músicas lentas do Kid Abelha seriam minhas e a bochecha colada na dela seria a minha. Era a redenção! A volta por cima!
Nos mantivemos por um bom tempo nessa montanha russa: um dia nas nuvens, no outro no inferno. Marcinho e eu sempre insatisfeitos, mas nenhum podia desistir daquilo e automaticamente entregar o ouro pro adversário. Lívia, por outro lado, achou por bem acabar de vez com aquela lengalenga e tomou uma decisão drástica e cruel: deu-nos em ambos um belo pontapé no traseiro em favor de um garoto mais velho, da oitava série, que já tinha carro e brinco na orelha. Mais um fiasco que levaria anos para ser cicatrizado...
Depois dessa tornei-me, pode-se dizer assim, um vadio. Foram anos e anos, da quarta até a oitava série, em que defendi com unhas e dentes a filosofia da solteirice. Qualquer mulher que me causasse uma leve taquicardia que fosse seria automaticamente descartada. Isso mesmo: durante esses anos todos meu foco sempre foi voltado para aquelas mulheres que me pareciam inofensivas, incapazes de provocar em mim alguma coisa que fosse além de uma ereção. Eu queria as gostosas, as bandidas e as raimundas da vida, desde que eu não identificasse nelas nada que fosse, para mim, apaixonante.
O problema é que, na vida real, não existe plano perfeito e, mais cedo ou mais tarde, o castelo acaba desabando. E desabou. Eis que surge no meu caminho, no meio de um show do Lulu Santos, a Débora. Além de linda, altamente gostosa, cabelos de índia e boca carnuda, ela me atropelou. Digo atropelou porque entrou na minha vida sem me dar a menor chance de me defender, de dizer não. Quando eu percebi, ela já estava dentro da minha casa, dentro da minha família, enfim, parte imprescindível da minha vida. Tinha todas as qualidades do mundo, menos uma: era ciumenta. Ciumenta não, ela praticamente reinventou o ciúme. Levava o ciúme a níveis jamais visitados pelo homo sapiens. E a conseqüência disso era que eu, apaixonado por ela e me comportando de forma impecável e imaculada, via de regra voltava para casa rasgado, unhado, mordido e repleto de escoriações. Sim, eu apanhava. Apanhava e não podia revidar porque ela, além do fato de ser mulher, era a mulher que eu adorava. E quando não batia em mim, atentava contra a própria vida. Abria a porta do carro em alta velocidade na tentativa desesperada de se lançar ao asfalto, subia no parapeito de seu apartamento no nono andar com ímpetos suicidas enquanto eu sofria na angústia de salvá-la e no medo de perdê-la. Tanto me desesperei, tanto sofri, que percebi que aquela relação doentia não podia perdurar, não era saudável para nenhum dos dois. Ao fim de dois anos de constante e mutiladora tensão, tomei coragem e terminei tudo. Digo tomei coragem e explico: é sabido que o homem dificilmente termina um relacionamento. As mulheres, essas sim, têm a dignidade de colocar um ponto final em um relacionamento sem futuro de maneira distinta e correta. Nós, homens, comumente nos acovardamos e acabamos optando pela saída genial: vamos fazer tudo de errado até que a mulher se canse de nós e ponha, ela própria, um fim à relação. Dessa forma, imagina-se, não precisamos lidar com a responsabilidade pelo término, uma vez que quem o solicitou foi a parceira...
A verdade é que, devido ao acúmulo de insucessos, tornou-se mais fácil para mim superar um relacionamento falido e partir para um próximo, e foi assim mesmo que fiz. Pouco depois do desfecho com a Débora já me vi novamente envolvido com outra mulher. Sua beleza era inquestionável, seu bom humor parecia transbordar de seu corpo contaminando todo mundo que estivesse ao seu redor. A simples companhia de Amanda já me fazia sentir um privilegiado. É verdade: quando eu estava com ela, tinha a nítida sensação de que eu era um homem de muita sorte, escolhido a dedo por Deus para desfrutar do prêmio máximo que era a companhia de Amanda. Meus amigos, pasmem, também a adoravam. Ela se sentava com a turma toda nos botecos da vida e ali nos divertia por horas com seu bom humor, suas informações sempre atualizadas sobre os mais variados assuntos, e bebia litros de cerveja sem que isso afetasse de alguma forma seu corpo perfeito. O interessante é que existe um fator capaz de modificar drasticamente os rumos de um relacionamento e que eu, um bobo inexperiente, até então descaradamente desconhecia: a intimidade. Um belo dia, eu ligo pra minha adorada Amanda, avisando que estou indo para o sítio de um amigo, numa cidade próxima, pra jogar uma bolinha e tomar uma cerveja com a turma. A resposta da Amanda? Lá vai: “Tomara que você bata esse carro no meio do caminho e morra! Aliás, só você não! Você e esses seus amigos fracassados”!
Só tenho uma coisa a dizer, caro leitor: não é fácil, não.

6 de dezembro de 2004

O ENTERRO DO MEU TIO

Outro dia recebi um telefonema às quatro da manhã: meu tio havia sido baleado na noite anterior e não resistiu aos ferimentos. Morreu. Ele estava tranqüilo numa padaria fazendo um lanche no exato momento em que dois assaltantes entraram e um deles, de dezessete anos, disparou seu revólver (não se sabe ao certo se por crueldade ou susto). Morreu e deixou esposa, três filhas, além de uma infinidade de parentes e amigos que o adoravam. O fato é que marcaram o velório e o enterro para o dia seguinte.
No velório, surpreendi-me ao perceber a aglomeração de uma triste e barulhenta multidão. As pessoas se acotovelavam em busca de espaço junto ao corpo, que ainda nem havia chegado. Foi a primeira vez que fui a um velório tão cheio, talvez porque até aquele dia eu só houvesse ido a alguns poucos e escassos enterros, e sempre funerais de pessoas já bem velhas, cuja grande parte dos amigos também já tivesse falecido.
A realidade é que pela primeira vez eu comparecia a um velório de alguém que morrera em pleno auge de sua atividade e cuja vida fora tirada de forma tão violenta, inesperada e ao mesmo tempo banal. E essa banalidade somada ao carisma e jovialidade do meu tio assassinado parecia aumentar de forma exponencial a dor e o inconformismo de todos que, ali no enterro, tentavam se consolar.
Tamanha e tão desordenada era a multidão que, no momento da chegada do corpo, foi necessária a intervenção de alguns familiares no sentido de liberar o cômodo onde estava o caixão. Deu-se então um critério, para mim arbitrário, de seleção: só poderiam ficar ali num primeiro momento os parentes, de forma que até os amigos mais íntimos e antigos tiveram de ser retirados da sala, dando lugar a sobrinhos distantes e primos de terceiro grau.
Do lado de fora, separados por uma porta de vidro, os amigos e conhecidos do meu tio se colocavam nas pontas dos pés e grudavam seus rostos no vidro numa tentativa desesperada e mórbida de visualizar o morto enquanto, do lado de dentro, o padre abria o caixão. Nelson Rodrigues costumava dizer que a verdadeira dor dança mambo. E é verdade: o ser humano, na aflição incompreensível do momento da perda, não sabe o que fazer. Pula, grita, dá cabeçadas na parede, silencia, se joga no chão, rodopia e, no dia seguinte, no momento em que acorda e lembra que aquilo não foi um sonho e que o morto realmente morreu, o sofrimento se repete. E assim a agonia e o sentimento de impotência vão prosseguindo, dia após dia.
Mas citei Nelson Rodrigues e preciso retornar ao velório. No instante da abertura do caixão, o que se ouviu foi um uivo agudo, doloroso e único, resultado do somatório do pranto inconformado e da lamúria de todos aqueles que tanto amavam o meu tio e, em volta do corpo, não suportavam aquela cena. Havia, ainda, a busca desesperada do último carinho, do último afago. Todos ali passavam ternamente a mão em seu rosto já frio, e essa talvez seja a característica mais desumana e dolorosa das mortes inesperadas, seja por acidente, seja pela violência humana: a morte inesperada não dá ao ser humano o direito ao último carinho, à última declaração de amor. A pessoa morre sem que tenhamos declarado todo o nosso sentimento, porque a maioria dos seres humanos tem essa mania boba de guardar para si o amor que sente. Só externamos o nosso ódio, enquanto escondemos o amor, bem escondidinho, em algum lugar dentro de nós. Ai daquele que for descoberto amando! Ai de mim se souberem que eu amo de verdade algumas pessoas nessa vida...
De onde eu estava, aos pés do caixão, eu também chorava e podia ver claramente a figura de meu tio. Ele havia acabado de voltar da praia, onde comemorou com minha tia seus vinte e cinco anos de casado, e por isso sua pele ainda estava bronzeada. A verdade é que, visualmente, seu corpo parecia intacto. Não fossem os algodões nas narinas, eu jamais entenderia o que é que faltava àquele corpo para que ele se levantasse dali, saísse do caixão e voltasse, saudável e bronzeado, a fascinar a todos nós com sua tradicional inteligência, seu bom humor, seu paternalismo, suas piadinhas prontas, seu empreendedorismo incontrolável, seu sorriso fácil, seu talento...
Taí: esse vai fazer falta.


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