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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil

8 de maio de 2006

AS COISAS DO ATROPELADO

"Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso".

E era exatamente assim, como o personagem de Kafka, que Fabiana se sentia. Lendo “A Metamorfose” ela percebeu de fato uma grande identificação com o protagonista do famoso romance. Mergulhada em suas utopias, há muito já se via como uma aberração: estranhava o mundo em que vivia como se não compartilhasse mais nada com o jeito humano de ser. Não conseguia mais se comunicar direito com as pessoas à sua volta, mesmo as mais próximas, que por sua vez viviam comentando entre si: “Fabiana está cada dia mais louca!”.
A verdade é que Fabiana era de fato, e com orgulho, diferente. Vivia no mundo da contemplação e tinha um compromisso absoluto com a sua própria felicidade. Não fazia concessões e não admitia fazer nada que fosse, para ela, chato ou entediante. Deliciava-se com livros, cinema e obras de arte, e não conseguia de maneira alguma se estabelecer no mundo oficial em que viviam suas amigas. Estas, sempre pragmáticas, moças de famílias tradicionais e respeitadas na cidade, viviam lhe dizendo:

-Pelo amor de Deus, Fabi! Você vive em outra realidade, minha filha! Parece que faz questão de ser diferente de todo mundo só pra chocar. Não quer saber de namorar ninguém, não acredita em casamento... Vai acabar ficando pra titia se continuar assim. Olha que já está chegando nos trinta!

-O que eu posso fazer, Beatriz? Eu não quero levar uma vida hipócrita. Quero vida de verdade. Vocês todos é que não enxergam o que está debaixo dos seus olhos! Isso aí não é vida pra mim não. Acho pouco. Quando casa é uma beleza, mais depois de um certo tempo eu já vi como que é. Fica aquele relacionamento mecânico, repetitivo, sem paixão, sem taquicardia, sem surpresa nenhuma.

-Ora, vamos admitir! Caia logo na real e faça como eu: me casei com o Rodrigo, que eu não amo e nem nunca amei de verdade, mas pelo menos é bem sucedido, me dá uma estabilidade na vida, sabe? Moro num bom apartamento, meus filhos estudam nos melhores colégios, tenho um carro do ano e uma casa de praia em Maresias! O que mais uma mulher pode querer?

- O que mais? Ora, tudo. Tudo o que eu não quero pra mim é essa tal “estabilidade” aí que você tá falando. Estabilidade é rotina! Eu quero uma vida instável, quero altos e baixos, quero rir muito e também chorar, que chorar faz parte da vida. Quero muita paixão e também aceito sofrer. Quero tomar porre e quero curtir a ressaca. Não quero de jeito nenhum um casamento burocrático, com diálogos decorados, jantar fora obrigatório no sábado à noite e beijinho morno de boa noite. Pra ser igual a você, que fecha os olhos pra não ver o marasmo que é a sua vida, que acha que felicidade é um carro zero, que trai e é traída e tá construindo sua vida inteira em cima dessa hipocrisia escrota, prefiro continuar do jeito que eu tô. Eu não sirvo pra isso.

- Fabiana, tá cada vez mais impossível conversar com você. Só tô querendo te ajudar e você vem me dando essas patadas!

- Me ajudar??? Me ajudar??? E desde quando eu tô precisando ser ajudada? Me deixa quieta no meu canto que eu sei muito bem o que eu tô fazendo e assim a gente nem precisa discutir. Adoro você, mas não agüento essa mania de querer ficar me forçando a ser igual a todo mundo. Se isso basta pra você, ótimo! Só que você tem que respeitar a minha opinião e, pra mim, essa vidinha tradicionalzinha não serve.

- Tudo bem. Mas escuta uma última coisa: aposto que você um dia ainda vai dar o braço a torcer e acabar igualzinha a todas nós. Casadinha, trabalhando que nem uma doida e ainda arranjando tempo pra buscar filho na escola e arrumar a casa pro maridão. Tenho certeza!

- Olha, Bia, confesso que acho difícil isso acontecer, viu? Principalmente essa parte do “maridão”. Tem tanto cara interessante nesse mundo, tanta gente legal que eu já conheci e tantos que eu sei que ainda vou conhecer... Cada um com um jeito diferente, uma mania, um cheiro... Acho isso bom demais! Quero mesmo é namorar muito, viver ali cada momento de verdade, sentindo o coração bater forte no peito. Esse papo de marido eu não descarto, mas só se fosse mesmo uma pessoa muito especial, tipo uma alma gêmea, mas você sabe que eu não acredito nessas coisas, né Bia?

- Ai, ai , ai, Fabiana... Você tá cada dia mais distante da realidade...

E era sempre assim. Fabiana falava e ninguém a entendia. Na cabeça das amigas, as suas idéias não faziam o menor sentido. Achavam, realmente, que Fabi estava à beira de ser internada num hospício ou coisa parecida. Da mesma forma, ela não conseguia admitir que alguém pudesse ser capaz de levar uma vida desse jeito premeditado que Beatriz e suas outras amigas levavam. Mas é verdade que Fabiana andava realmente meio perdida. Ela sabia claramente o que não queria, mas não sabia muito bem o que queria.

Gostava muito mesmo era de sair por aí no seu carrinho, meio velho, meio desregulado, indo atrás de uma boa conversa em algum boteco, alguma festa, cantarolando distraída os sambas que gostava de ouvir. E foi justamente numa destas noites que aconteceu o fato que marcaria, talvez para sempre, a vida de Fabiana.

Animadíssima naquela noite, a programação começava num bar com alguns amigos dos mais boêmios. Com essa turma, era impossível saber onde terminaria a noite, e ela adorava essa sensação de incerteza, de improviso, essa noção de que tudo poderia acontecer. No caminho para o bar, no seu carro, ela ouvia um cd do Cartola e cantava, ou melhor, gritava junto com o cantor o seu samba preferido:

Deixe-me ir, preciso andar,
Vou por aí a procurar,
Sorrir pra não chorar...

Quero assistir ao sol nascer,
Ver as águas dos rios, correr,
Ouvir os pássaros cantar,
Eu quero nascer, quero viver!

Deixe-me ir preciso andar,
Vou por aí a procurar,
Sorrir pra não chorar...

Se alguém por mim perguntar,
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar!”.


No ápice da sua empolgação, Fabiana ouviu um forte estrondo e sentiu um solavanco que quase lhe arranca o pescoço: atropelara algo. Em pânico, desceu do carro e viu quase debaixo dele, estirado no chão sobre uma poça de sangue, o corpo de um homem.

Disse corpo e isso pode dar a impressão de que o homem estivesse já morto. Não estava. É verdade que não conseguia se mexer, mas gemia muito: o choque havia sido forte e ele devia estar todo quebrado, muito machucado. Sem conseguir se mexer também estava ela, atônita, no meio da rua. O trânsito não parou. Os carros continuavam a passar em alta velocidade na avenida. No máximo buzinavam uma buzina raivosa. E não havia pedestres. A avenida larga e asfaltada era terreno inóspito para a caminhada e a prova disto era aquele rapaz de camiseta branca, calça jeans e tênis All Star que agonizava debaixo do carro.

Ela então ouve uma voz. Era ele, o atropelado. Com dificuldade, o sangue escorrendo, pediu que ela fizesse alguma coisa, chamasse uma ambulância. Só assim ela saiu do estado de choque. Venceu a inércia, ligou para o socorro e tentou conversar com o ferido. Chegou bem perto para entender o que ele tentava sussurrar, tão perto que sentiu seu hálito de sangue. A alça da bolsa que ele carregava havia se enrolado em seu pescoço e dificultava-lhe a respiração.

Desesperada, mas com muito cuidado, ela conseguiu desenrolar e retirar a bolsa no exato momento em que chegava o socorro. Rápidos e sem fazer muitas perguntas, os médicos iniciaram o atendimento ao rapaz. Fabiana ficou ali, parada, observando tudo e segurando aquela bolsa suja de sangue que há poucos instantes retirara. Em poucos instantes, a ambulância partiu.

Depois de resolvidas todas as questões policiais e burocráticas ela correu alucinada para o hospital. Estava muito preocupada com a saúde do moço e, ainda por cima, tinha ficado por engano com a sua bolsa. Sentou-se na sala de espera, aguardando ansiosa o boletim que o médico lhe prometera. Tremia enquanto idéias desconexas passavam por sua cabeça: “Como é frágil a vida humana! Adoro os sambas do Cartola! Todo mundo deve estar se divertindo no bar... Será que a família daquele homem já sabia do seu atropelamento? Ai que preguiça da Beatriz! Que pena que o inseto morreu no livro do Kafka! Será que aquele rapaz que eu atropelei tinha namorada? Será que ele vai morrer?”

Não suportou. Tinha necessidade de se sentir íntima daquele homem que atropelara. Abriu a bolsa à procura de alguma coisa que lhe ajudasse a conhecer melhor aquela pessoa. Encontrou, no primeiro compartimento, um Ipod. Isso mesmo, um daqueles aparelhos portáteis que armazenam fotos e tocam músicas. Sabia que mexer no aparelho seria invasão de privacidade, mas não conseguiu evitar e foi, aos poucos, se impressionando. Olhando as fotos, foi acompanhando e montando na sua cabeça uma história da vida do moço que ela sabia que estava entre a vida e a morte. Nas fotos, ele aparecia ainda pequeno, no colo da mãe e do pai, depois numa festa de aniversário com bolo e tudo. Aos poucos o menino da foto ia crescendo e se transformando no adulto que ela atropelou. Como ele era bonito!
O peito de Fabiana começou a doer forte à medida que ela ia identificando uma série de impressionantes coincidências entre eles. Algumas fotos mostravam exatamente as mesmas praias pequeninas e quase desertas não fossem as vilas de pescadores que Fabi adorava conhecer. Outra foto mostrava o estádio do Mineirão, no meio da torcida do Galo, exatamente no mesmo lugar da arquibancada em que Fabiana gostava de se sentar pra torcer até ficar rouca e tomar cerveja com os amigos. Rodas de samba, botecos, churrasco com amigos, cidadezinhas do interior, uma casa com rede na varanda: tudo que aparecia naquelas fotos representava precisamente o universo que Fabiana adorava habitar. Começou a olhar a coleção de músicas e seu espanto foi ainda maior. Trazia no aparelho uma coleção completa e eclética de samba e tudo o mais que ela gostava de ouvir: estavam ali Cartola, Nelson Cavaquinho, Clara Nunes, Chico Buarque, Tom e Vinícius, Paulinho da Viola...
Sentiu uma vontade muito grande de chorar. O corpo que há pouco estava debaixo de seu carro foi deixando de ser um anônimo, uma pessoa qualquer. Diante dos seus olhos, através das fotografias e das músicas, foi se formando um sujeito, um ser humano com uma história de vida, uma família, amigos e um gosto musical. O corpo virou gente, se humanizou e ainda por cima começava a dar à Fabiana a impressão de que havia atropelado um conhecido, um grande amigo, ou até um namorado. Aquele homem, cada vez mais bonito, freqüentava o mesmo mundo que ela. Lembrou-se então da conversa que tivera com Beatriz e quase acreditou que acabara de atropelar a tal “alma gêmea”.
Foi quando chegou o médico trazendo notícias. Interpelado afoitamente por Fabiana, explicou que havia feito todos os procedimentos necessários e que o rapaz estava em coma devido a uma série de traumatismos na cabeça. A situação dele era bastante grave, mas havia esperança de que ficasse bom.

Fabiana chorou. Chorou muito. Sentou-se num canto da sala de espera e lá ficou chorando um choro silencioso enquanto revia todas as fotos e ouvia todos aqueles sambas. Cansada, os olhos vermelhos, resolveu abrir novamente a bolsa do atropelado para guardar o Ipod e deixou cair dela um livro: era “A Metamorfose”, de Kafka.


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