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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil

28 de março de 2005

SOBRE AMOR À PRIMEIRA VISTA

Fala-se bastante, hoje e sempre, em amor à primeira vista e é preciso fazer logo um esclarecimento: é uma grandessíssima bobagem. Amor à primeira vista é uma coisa que nunca existiu, não existe e jamais existirá. Sei que sempre haverá por aí aqueles cidadãos rasteiros e irrefletidos que logo se exaltarão e sairão berrando frases repletas de pontos de exclamação acusando-me de ser um insensível ou até mesmo um traumatizado ou recalcado por pensar assim. Por isso, desde já inicio minha defesa alegando que, muito pelo contrário, faço tal afirmação na qualidade de severo defensor da plenitude do significado da palavra amor.
Certa vez, vi uma mulher que me causou imediatamente um desconcerto incomparável com tudo que eu já havia sentido por alguém “à primeira vista” até então. E é exatamente aí que mora o perigo. Atordoados pela taquicardia e pelo calor causados por aquele primeiro impacto, torna-se mais fácil esquecermos que o amor é uma emoção completa. Completa porque para caracterizá-lo é necessário o uso de mais sentidos. Além da primeira “vista” deve haver o primeiro cheiro, o primeiro toque, o primeiro gosto ou o primeiro som. Ou seja, confiar apenas na primeira vista e desprezar a perfeição de nossos sensos é não enxergar verdadeiramente. Vemos melhor quando usamos o corpo todo. O amor precisa da comunhão dos sentidos. E também precisa do tempo.
Falei sobre o tempo e explico: só o tempo é capaz de revelar nossas ilusões de ótica, porque geralmente vemos o que queremos ver. Pessoas carentes, em busca desesperada de companhia, se deixam enganar facilmente por estelionatários exatamente porque projetam ali um grande amor. Mas a verdade aparece com o tempo. Assim também são as amizades. Com o passar dos anos podemos facilmente discernir os verdadeiros amigos e os eventuais interesseiros.
O amor não existe na primeira vista, nem na segunda e nem na terceira. Não se deve ter pressa. Trata-se de um exercício de paciência que pode até parecer complicado mas que, aos poucos, vai se mostrando valioso e gratificante. É como um quebra-cabeça que vamos montando, a quatro mãos, colocando uma peça por dia. Com o passar do tempo já começamos a perceber ali a figura do amor, apesar de ainda haver muitos espaços vazios. Assim, com calma, continuamos posicionando as peças, preenchendo esses vazios, e o amor vai aparecendo cada vez mais, sua imagem vai se escancarando diante de nossos olhos tornando-se cada vez mais nítida. E sempre haverá espaço para colocarmos mais uma peça.

15 de março de 2005

DONA ALICINHA

Já acordou daquele jeito. Vestiu o roupão tradicional e desceu as escadarias da mansão para tomar o café da manhã.
-Alzira! Pelo amor de Deus, Alzira! Tenha a santa paciência!
-Mas o que é que foi, Dona Alicinha!
-O que é que houve? Quer saber o que é que houve? O que foi que eu te falei ontem, hein?
-Não lembro não, senhora!
-Esse é o problema! Você nunca lembra! Eu te falei mil vezes pra você servir o café essa semana usando a toalha de mesa branca, mas você insiste em desobedecer...
-É porque a branca tá lavando, Dona Alicinha...
-Ah! Agora além de tudo deu pra me responder, Alzira? Você acha que eu não sei que você faz essas coisas só pra me irritar? Pois eu vou te mostrar que sou eu quem manda nessa casa. Ai de você se me desobedecer mais uma vez que seja! Uma vezinha só!
Era sempre assim. Dona Alicinha acordava com a macaca e quem sofria as conseqüências era quase sempre Alzira. Todas as manhãs ela ouvia, calada e obediente, os desaforos da patroa. E o pior é que Alzira ainda a defendia perante as outras domésticas da rua. Quando falavam mal de Dona Alicinha, Alzira logo retrucava: - No fundo ela tem um coração de ouro!
Alicinha levava a chamada vida de madame. Casada, mãe de dois filhos homens já crescidos e uma menina ainda criança, vivia de cuidar da casa e dar ordens a uma infinidade de criados. Foi treinada desde a mais tenra infância até o dia em que subiu ao altar com Plínio para realizar, da melhor maneira possível de acordo com os conceitos seculares de seus pais, as tarefas de uma verdadeira dona de casa.
Após a habitual bronca matinal em Alzira, pegou seus artefatos esportivos importados e rumou para a academia de ginástica onde diariamente se exercitava com o auxílio de seu personal trainer e a companhia das amigas do condomínio fechado. Lá passou quase a manhã inteira discorrendo sobre a incompetência de Alzira enquanto recebia o apoio uníssono das colegas:
-Se fosse lá em casa já estava no olho da rua! –E outra logo emendava:
-Esse povo está cada vez mais despreparado. Outro dia me veio uma que mal sabia fazer um estrogonofe. Sem falar em outra que eu descobri que fazia programas à noite! Vê se pode! Uma prostitutazinha dentro da minha casa!
-É. Se bobear essa gente toma conta...
Saiu dali aliviada. Falar mal da criadagem era, para ela e aquelas honradas senhoras, uma verdadeira e eficiente terapia. Tão eficiente que já deixou a academia com o apetite renovado para se encontrar com as irmãs, num almoço no restaurante mais badalado no momento. O restaurante ficava numa esquina movimentada e nobre da cidade e oferecia algumas mesas na calçada além de outras num ambiente interno climatizado com excelente ar condicionado. Em princípio houve uma dúvida entre os dois ambientes, dúvida essa que foi rapidamente solucionada por Alicinha:
-Vocês estão doidas! Vamos nos sentar bonitinhas lá dentro no ar condicionado porque aqui fora toda hora aparece um daqueles pedintes insuportáveis querendo vender rosas, engraxar sapato... É um inferno! Isso sem falar no risco de passar um daqueles trombadinhas com caco de vidro na mão e tudo. Deus que me livre!
A argumentação de Alicinha convenceu prontamente suas irmãs, que a seguiram para o interior do recinto. De dentro do restaurante, no conforto do ar condicionado, Alicinha já observava pelo vidro a presença de algumas crianças de rua: -Que inferno! Lá vêm aqueles meninos pedir moeda ou então sobra de comida. Eles não dão sossego...
As irmãs tentavam acalmá-la: -Calma, Alicinha... Calma, minha filha. Desse jeito você vai acabar tendo um troço!
E ela respondia: -Calma nada! Esse presidente não faz nada e dá nisso. A gente é que paga o pato!
Imediatamente chamou o garçom e fez o pedido: -Olha aqui, meu filho... Embrulha o que sobrou desse peixe que é pra dar pro menino ali na porta.
Deixou o restaurante apressada e jogou o marmitex no colo do menino, pois já estava atrasada para levar a filha à aula de francês. Pegou a menina em casa e saiu dirigindo às pressas. As duas conversavam distraídas sobre a novela quando foram interrompidas por um garoto no sinal fechado:
-Vai um chicletinho aí, dona?
-Ai! Que susto, moleque! Quer me matar do coração?
Fechou o vidro blindado na cara do rapazinho e voltou-se para a filha: -Absurdo! Esses moleques ao invés de trabalhar e arrumar um emprego decente ficam nessa vagabundagem no meio da rua. E ainda por cima assustam a gente...
Estressada, achou melhor voltar pra casa e dar uma cochilada até a hora de buscar a filha no francês, mas não conseguiu porque o jardineiro fazia um barulho ensurdecedor com o cortador de grama. Não teve outra saída, a não ser ficar rolando na cama de um lado para o outro até tocar o celular: era a filha.
-Mamãe, acabou a aula. Pode vir me buscar.
-Tá bom, meu amorzinho. Mamãe já vai...
Como se já não bastasse o ódio que alimentava pelo jardineiro, ao chegar ao curso da filha deparou-se, abismada, com uma animada conversa entre sua menininha e um garotinho negro um tanto mal vestido para os padrões daquela renomada e cara escola. Puxou-a bruscamente para dentro do carro e iniciou o interrogatório:
-Que garoto é esse, minha filha?
-É o Laércio, mãe. Ele é da minha sala de francês.
-Como assim? Ele não me parece ter condições financeiras para freqüentar essa escola...
-Eu sei, mãe. É que ele é filho da moça da cantina, então ele pode estudar de graça. Ele é muito engraçado. E o pessoal da sala fala que ele quer namorar comigo.
-Nem brinca com uma coisa dessas, minha filha. Só faltava essa. Com tanta gente branca nessa escola você vem me arrumar justo um negrinho? Ah! Tenha a santa paciência!
A filha, calada, não entendeu nada.
Mais um dia na vida de Alicinha estava terminando. Durante quase 24 horas ela permaneceu dura como uma rocha diante das situações mais tristes do cotidiano. Xingou a empregada doméstica pela manhã, esquivou-se dos pedintes na saída do restaurante, fechou o vidro na cara do vendedor de chicletes e repreendeu a filha por sua amizade com um negro. Poderiam até pensar que Alicinha é uma vítima da absorvente vida numa cidade grande. Poderiam argumentar que a repetição exaustiva daquele horror cotidiano pelo período de quase uma vida inteira acabou por torná-lo banal para aquela madame. Poderiam pensar, ao final daquele dia, que a rudeza da metrópole a tornara incapaz de sofrer ou de sentir, não fosse por um último e inesperado acontecimento: no começo da noite, Alicinha assistia à sua infalível novela ao lado de seu marido Plínio quando ele, num movimento incerto, derrubou uma taça de vinho tinto no sofá branco recém reformado. Ao ver aquele líquido vermelho se espalhando pelo alvo tecido do sofá, Alicinha chorou. Mas não foi um pranto qualquer. Ela chorava o mesmo choro de quem acaba de ver morrer um filho. Rolava no carpete, esperneava, soluçava enquanto esfregava a própria saia na mancha de vinho. Em vão.


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