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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil

10 de dezembro de 2010

O PIOR DOIDO É O QUE VÊ TUDO

Não é fácil ser boêmio. Verdadeiros antropólogos do prazer, doutorandos da devassidão, os boêmios somos pessoas sem fim. Tão bem definidos pelo ébrio profissional Paulo Terror como viciados no "acúmulo de excessos", escolhemos levar a vida nesse passo mais curvilíneo, menos objetivo, o que nos parece de fato a decisão mais acertada a ser tomada nesse mundo de incertezas. Esse estilo de vida assim vadio é bom, mas a gente sabe que tudo que é bom tem seu preço. É aquela história do "cada escolha uma renúncia", como se existisse na vida uma lei da compensação: a gente sempre ganha umas coisas e perde outras. Pra você ter uma ideia, em decorrência da boemia já ganhei muitos quilos, mas em compensação estou perdendo a memória.

O fato é que uma coisa leva à outra. Esse incremento alarmante na massa corporal, por exemplo, me levou certa feita a esse estranho templo do narcisismo: a academia de ginástica. Lá estava ela, repleta de espelhos e de pessoas que analisavam nos reflexos a definição dos seus abdomens suados. Fui submetido a alguns penosos exames e estes acusaram impiedosamente que meu índice de massa corporal era considerado indesejável. "Índice de massa corporal indesejável" foi o jeito que os professores de educação física inventaram para poderem chamar a gente de gordo com educação, e ainda por cima com um certo respaldo científico.

Depois de aceitar com surpreendente tolerância o diagnóstico de sedentarismo e obesidade, veio o cidadão longilíneo de aparência irritantemente saudável me explicar que pra alcançar o tão sonhado índice de massa corporal indicado para o meu biótipo o exercício mais recomendado era a corrida. Sendo assim, fui encaminhado à esteira, aquele equipamento em que, contrariando a física que eu aprendi no colégio, realiza-se um trabalho fazendo força sem deslocamento. Parecia detestável e pouco inteligente ficar fazendo esforço sem nem sair do lugar, mas ainda residia em mim uma vaidade que a boemia insistia em querer expulsar. Um mesmo corpo que desejava o convívio sadio entre mundos tão distintos: a noite e o dia, o tira-gosto e as artérias saudáveis, o excesso de vodca e os neurônios imortais. É bem verdade que fica difícil a vida assim, mas suportar uma tortura diária de meia hora na esteira despontou dentre todas como a solução menos inviável (houve, por exemplo, quem sugerisse a tal reeducação alimentar, que na verdade não passa da desculpa que os gordos precisavam pra poder pensar em comida o tempo todo).

Resignado, resolvi aceitar a árdua tarefa e comecei logo no primeiro dia. Meia horinha de corrida pra poder tomar minha cerveja com menos culpa de noite. Eu ainda estava no começo do exercício quando ele chegou. Usava uma barba vasta e uma camisa branca meio frouxa de mangas bem compridas.

- Moço? - ele me chamou.
- Pois não - respondi.
- Quanto é que eles lhe pagam pro senhor ficar correndo aqui nessas máquinas?
- Uai - estranhei - não me pagam nada. Pelo contrário: eu é que pago pra eles.
- Tá doido, moço? Com esse tanto de rua lá fora?

Aquela resposta me atingiu em cheio. Na mesma hora, me senti como aqueles ratinhos idiotas que passam a vida inteira correndo naquelas rodinhas sem nunca alcançar o queijo. Nunca alcançam, mas nunca param de correr. Pensei: estou quase um hamster. Olhei para o lado e vi vários outros hamsters, todos correndo lado a lado, dando tudo de si sem sair do lugar, cada um perseguindo seu parmesão imaginário. Olhei para o outro lado e vi uns enfermeiros recolhendo o rapaz barbudo e me pedindo desculpas: "O Senhor me desculpe, mas deixamos o portão aberto sem querer. Ele escapou da clínica de reabilitação mental hoje de manhã e só agora fomos encontrá-lo aqui nessa academia."

Pra quem não sabe, clínica de reabilitação mental é o nome que deram ao hospício depois que o mundo foi infestado pelos chatos do politicamente correto. Em bom português dos anos 80, o barbudo seria descrito como um louco de camisa-de-força que tinha fugido do hospício. Mas o fato é que, de todos, ele foi o que me pareceu enxergar tudo com mais clareza ali. Malucos éramos nós, pagando pra correr em esteiras "com esse tanto de rua lá fora". O alucinado era o único lúcido da história.

E de repente eu imaginei essa história dentro de um contexto maior. Uma possibilidade remota, é verdade, mas ainda assim uma possibilidade: imaginei que talvez as pessoas lúcidas como ele sejam minoria. E que talvez os hospícios sejam lugares que nós, a maioria esmagadora de alienados, democraticamente criamos para manter afastados do nosso convívio justamente essa minoria de pessoas muito lúcidas. Lúcidas e por isso capazes de fazer as observações mais brilhantes, que esclareceriam desagradavelmente a cada instante a verdade sobre a absurda falta de sentido do nosso mundo, e revelariam talvez o delírio que torna possível acordarmos toda manhã para mais um dia. E assim transformariam nossa vida numa experiência bem mais difícil do que já é.

Talvez também seja por isso que tem tanta gente boêmia, como eu. Tanta gente por aí bebendo, tanta gente fumando, tanta gente cheirando. Tanta gente correndo freneticamente em milhares de esteiras mundo afora. Tanta gente rezando, orando, cantando obsessivamente à procura de um Deus. Cada um escolhendo o seu alívio, sua distração, a sua droga que ajude a escapar de uma lucidez insuportável como a desses poucos que moram nos hospícios e a tudo enxergam, convenientemente afastados de nós.

-Me tirem aqui dessa esteira e me ponham na ambulância! Eu quero ir é com o louco.


3 comentários:

Hìtzaßêrllé disse...

" - Olá, eu estava de passagem. Daí resolvi ler seus artigos e gostei bastante. Parabéns por todos eles!
[..] Se poder ir lá no meu fazer uma visitinha, ficarei grata desde já!"

http://hitzaberllelacouth.blogspot.com/

abraços.

Liz disse...

Li certa vez e nem me lembro onde, muito menos o autor, que os 'loucos são certos numa sociedade errada...'

Tô achando que é bem por ai!

Viva a boemia, viva as 'ruas lá fora', parafraseando Nelson Rodrigues, 'toda lucidez será castigada'!

Ótimo texto, parabéns!

Abs,

Brenda disse...

Muito boom mesmo!


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