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Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil

1 de junho de 2010

COMO TODA QUINTA

Como toda quinta, saiu direto do escritório para o supermercado onde fazia as compras da semana. Era sempre assim. Quinta era o dia em que seu marido viajava a trabalho, e Consolação aproveitava o pretexto das compras pra preencher a noite solitária. Era a noite que passava invariavelmente sozinha, mas não achava aquilo de todo ruim. Na verdade, encarava até com bons olhos aquela ausência semanal: era momento único, bastante propício para espairecer, divagar, tentar pensar na vida com mais calma, sem a inevitável interferência determinada pela volumosa presença do consorte. “Botar as idéias em ordem”, era o que ela gostava de dizer.

No carrinho do supermercado, entre gôndolas de laticínios e pescados, entre amaciantes e embutidos, começou a fazer sua própria terapia. Inquieta, como toda quinta, pensou na vida que estava levando. Mais do que isso: pensou em todas as vidas que não estava levando. De um lado o que havia de concreto: seu trabalho no escritório, seu marido, a possibilidade de uma filha. Do outro lado o devaneio, tudo que uma outra vida poderia oferecer que não fosse o seu trabalho no escritório, seu marido e a possibilidade de uma filha. Não que estivesse desanimada com a realidade. Morria de medo de se tornar uma dessas mulheres que responsabilizam o marido pelos seus próprios fracassos, que usam o casamento como desculpa para o abandono de sonhos importantes. Esse tipo de covardia não era com ela.

Justamente pra evitar isso é que gostava de pensar sempre a respeito do caminho que estava traçando pra sua vida. Traçando, sim, porque fazia questão de sentir-se no comando da situação. Encontrava sossego na ilusão do controle. Parecia-lhe abominável e assustadora a idéia de uma vida ao sabor do acaso, na qual os eventos se sucedessem sem que tivessem sido, por ela, programados. E por isso lhe eram tão importantes essas meditações nas noites de quinta.

Chegou em casa aflita, carregando sozinha todas as sacolas e pensamentos. Aos poucos, foi tentando organizar tudo. Foi ajeitando vagarosamente no lugar devido compras e reflexões. Nem tudo coube.

Depois, como toda quinta, começou a chorar. Deitou-se na cama, cobriu o rosto com o edredon e deu início à epopéia semanal do pranto. Era sempre a mesma agonia com hora marcada, o mesmo choro alto, igual ao de criança quando machuca. Gemeu, rolou na cama, soluçou, tanta lágrima que chegou a arder-lhe a pele. Ficou assim até dormir.

Na manhã seguinte acordou refeita. Eufórica. Como toda sexta.

7 comentários:

Thasio Sobral disse...

a 'rotina' da vida, é absurda.
não podemos esperar que ela seja linear por mais que desejassemos. E por mais que almejamos coisas que nao irão acontecer, a reflexão é maior presente do homem, mesmo que ela nos traga resultados nada satisfatórios.

Frederico Bernis disse...

Assino embaixo, Th.
Abraço.

CLAUDIO DAMASCENO disse...

Obrigado.

www.casdamasceno.blogspot.com

Paula Christofoletti Togni disse...

A rotina da vida pode ser absurda...mas nesse momento sinto falta dela!Já não encontro sossego na ilusão do controle...me cansa o excesso do acaso... Queria que um dia, ao menos um dia, fosse "como toda quinta".
Adorei sua "pequena história".

manumaluca disse...

Nada como a rotina. Absurda ou não é nossa.

Natália Menhem disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Natália Menhem disse...

Ei. Não te conheço e nem sei explicar como cheguei aqui... Os caminhos malucos da internet...

Talvez esteja sendo um pouco intrometida, mas gostei muito deste texto. "A vida que estava levando" e "as vidas que não estava levando"... O estar no comando e a ilusão de controle que a rotina pode passar.

Dúvidas e questões dos seres humanos. E, pensando bem, estranho seria alguém levar uma vida tão "segura" que nunca se pusesse a questionar qual outra vida poderia estar vivendo, não? (Ou talvez eu pense isso para apaziguar a "alma" quanto às minhas inquietudes)

Quanto ao acaso - e sua importância, recomendo um dos últimos artigos do Contardo Calligaris, está no blog dele. Não me lembro o nome, mas começa falando de House, passa pela síndrome de déficit de atenção e consegue levantar esta lebre.

Eu, cá com meus botões, acho o caos do acaso fantástico, necessário e inevitável...

Mas vou parar por aqui, porque, para uma desconhecida do autor, já estou beirando a insolência.

Gostei do texto, parabéns!

Um abraço,
Natália


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